Camillo Berneri. “O Marxismo e a Extinção do Estado”

 

O MARXISMO E A EXTINÇÃO DO ESTADO

De há algum tempo para cá, acontece frequentemente no campo da emigração italiana antifascista, seja no decorrer de reuniões públicas, seja em discussões amigáveis, ouvir os anarquistas atribuir ao marxismo uma tendência estatólatra, que efetivamente se observa em certas correntes da social-democracia que se reclamam do marxismo, mas que não se constata quando se vai diretamente à fonte do socialismo marxista.

O desaparecimento do Estado é claramente profetizado por Marx e por Engels, e isto explica a possibilidade que existiu, no seio da Iª Internacional, de uma convivência política entre socialistas marxistas e socialistas bakuninistas, convivência que não teria sido possível sem essa coincidência teórica.

Marx escrevia, na Miséria da Filosofia:

A classe trabalhadora, no curso de seu desenvolvimento, substituirá a antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes e o seu antagonismo, e não haverá mais poder político propriamente dito.

Engels, por sua vez, afirmava no Anti-Dühring:

O Estado desaparecerá inevitavelmente, juntamente com as classes. A sociedade, que reorganiza a produção com base na associação livre de todos os produtores, em pé de igualdade, relegará a máquina governativa ao posto que lhe fica bem: o museu das antiguidades, ao lado da roca e do machado de bronze.

E Engels não adiava a extinção do Estado para uma fase final da civilização, e sim apresentava-a como estreitamente conexa à revolução social e desta inevitavelmente resultante. Escrevia ele num artigo seu de 1847:

Todos os socialistas estão de acordo em pensar que o Estado, e com ele a autoridade política, desaparecerão como consequência da futura revolução social; o que significa que as funções públicas perderão o seu caráter político e se transformarão em simples funções administrativas, de supervisão dos interesses locais.

O Estado surge identificado pelos marxistas com o governo, ao que eles antepõem um sistema em que o governo dos homens é substituído pela administração das coisas, sistema que, para Proudhon, constitui a anarquia.

Lenin, em O Estado e a Revolução (1917), reconfirma o conceito da extinção do Estado, afirmando: Quanto à supressão do Estado como meta, nós não nos diferenciamos de todo dos anarquistas.

É difícil discriminar o caráter tendencioso do caráter tendencial das supracitadas afirmações, dado que Marx e Engels estavam em luta com a forte corrente proudhoniana e bakuninista e que Lenin, em 1917, via a necessidade política de uma aliança entre os bolcheviques, os socialistas revolucionários de esquerda, influenciados pelo maximalismo, e os anarquistas. Parece-me certo, todavia, que embora não excluindo a tendenciosidade do modo e do momento dessas formulações, estas respondiam a uma real tendência. A afirmação da extinção do Estado está demasiado intimamente conexa à concepção marxista da natureza e das origens do Estado, e desta é demasiado necessariamente derivável, para lhe atribuir um caráter absolutamente oportunista.

O que é o Estado para Marx e para Engels? É um poder político em função de conservação dos privilégios sociais e da exploração económica.

No prefácio à 3ª edição da obra de Marx A guerra civil em França, Engels escrevia:

Segundo a filosofia hegeliana, o Estado é a realização da Ideia, isto é, em linguagem filosófica, o reino de Deus sobre a terra, o domínio onde se realiza ou devem realizar-se a verdade eterna e a eterna justiça. Daí o respeito supersticioso pelo Estado e por tudo o que se refere ao Estado, respeito que tanto mais facilmente se instala nos espíritos quanto mais estes estão, logo desde o berço, habituados a imaginar que os assuntos e interesses gerais de toda a sociedade não poderiam ser regulados de maneira diferente de como se tem feito até hoje, isto é, por obra do Estado e dos seus funcionários bem instalados. E acredita-se que já se fez um progresso verdadeiramente audaz quando nos libertámos da crença na monarquia hereditária, para jurar aos pés da República democrática. Mas na realidade o Estado não é outra coisa senão uma máquina de opressão duma classe por parte doutra, seja numa república democrática ou numa monarquia, e o menos que se pode dizer é que ele é um flagelo que o proletariado herdará na sua luta para chegar ao seu domínio de classe, mas do qual deverá, como fez a Comuna, e na medida das possibilidades, atenuar os efeitos mais fastidiosos, até ao dia em que uma geração crescida numa sociedade de homens livres e iguais poderá desembaraçar-se de todo o fardo governativo.

Marx (na Miséria da Filosofia) diz que, realizada a abolição das classes, já não haverá poder político propriamente dito, pois o poder político é precisamente a expressão oficial do antagonismo existente na sociedade burguesa.

Que o Estado se reduza ao poder repressivo sobre o proletariado e ao poder conservador relativamente à burguesia, é uma tese parcial, seja examinando o Estado anatomicamente ou fisiologicamente. Ao governo dos homens associa-se, no Estado, a administração das coisas: e é esta segunda atividade que lhe assegura a permanência. Os governos mudam. O Estado fica. E o Estado não está sempre na função de poder burguês: como quando ele impõe leis, promove reformas e cria instituições contrastantes com os interesses das classes privilegiadas e favoráveis, ao invés, aos interesses do proletariado. O Estado, além disso, não é só o gendarme, o juiz, o ministro. É também a burocracia, tão poderosa como e às vezes mais do que o governo. O Estado fascista é hoje na Itália algo de mais complexo do que um órgão de polícia e do que um gestor dos interesses burgueses, porque está ligado por um cordão umbilical a um conjunto de quadros políticos e corporativos com interesses próprios nem sempre, e nunca inteiramente, coincidentes com a classe que levou o fascismo ao poder e que a ditadura fascista, para conservar o poder, serve.

Marx e Engels tinham diante de si a fase burguesa do Estado e Lenin tinha diante de si o estado russo em que o jogo da democracia era mínimo. Todas as definições marxistas do Estado dão uma impressão de parcialidade; o quadro do Estado contemporâneo não pode entrar na moldura das definições tradicionais.

Parcial é igualmente a teoria formulada por Marx e por Engels sobre a origem do Estado. Exposta com as palavras de Engels, ela soa assim: A um certo ponto do desenvolvimento económico, que estava necessariamente ligado à cisão da sociedade em classes, o aparecimento das classes fez do Estado uma necessidade. Agora aproximamo-nos a largos passos de um grau de desenvolvimento da produção em que não só a existência destas classes deixa de ser uma necessidade, como se torna um obstáculo positivo para a produção. As classes desaparecerão tão prontamente como surgiram. E com elas afundar-se-á inexoravelmente o Estado.(A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado).

Engels retorna à filosofia do direito natural de Hobbes, da qual adota a terminologia, não fazendo mais do que substituir a necessidade de domar o homo homini lupus pela necessidade de regular o conflito entre as classes. O Estado teria surgido, segundo Marx e segundo Engels, quando já se tinham formado as classes, e teria surgido com função de órgão de classe. Arturo Labriola (Al di là del capitalismo e del socialismo, Paris, 1931) diz a este propósito:

Estes problemas das “origens” são sempre muito complicados. O bom senso aconselharia a lançar sobre eles alguma luz e a localizar os materiais que lhes dizem respeito, sem se iludir de poder alguma vez chegar ao fundo. A ideia de poder ter uma teoria das “origens” do Estado é romanesca. Tudo o que se pode pretender é que se possam indicar elementos que na ordem histórica é muito provável que tenham concorrido para gerar o facto. Ora que o surgimento das classes e o surgimento do Estado devem ter uma relação entre si é coisa evidente, especialmente quando se recorda a função predominante que o Estado teve no surgimento do Capitalismo.

Segundo Labriola, o estudo científico da génese do capitalismo, confere um caráter de realismo verdadeiramente insuspeito às teses anarquistas sobre a abolição do Estado. E ainda: Parece na verdade bastante mais provável a extinção do capitalismo como efeito da extinção do Estado, do que extinção do Estado como efeito da extinção do capitalismo.

Isto parece evidente pelos estudos dos próprios marxistas, quando são estudos sérios, como aquele de Paul Louis sobre Le travail dans le monde romain (Paris, 1912). Deste livro resulta claramente que a classe capitalista romana se formou como parasita do Estado e protegida pelo Estado. Dos generais salteadores aos governadores, dos agentes dos impostos às famílias dos argentários, dos empregados da alfândega aos fornecedores do exército, a burguesia romana criou-se mediante a guerra, o intervencionismo estatal na economia, o fiscalismo estatal, etc., bem mais do que doutro modo. E se examinarmos a interdependência entre o Estado e o capitalismo, vemos que o segundo tem beneficiado largamente do primeiro por interesses estatais e não propriamente capitalistas. Tanto é verdadeiro isto, que o desenvolvimento do Estado precede o desenvolvimento do capitalismo. O Império Romano era já um organismo vastíssimo e complexo quando o capitalismo romano estava ainda na gestão familiar. Paul Louis não hesita em proclamar: «O capitalismo antigo nasceu da guerra». Os primeiros capitalistas foram, de facto, os generais e os publicanos. Toda a história da formação das fortunas é história na qual está presente o Estado. É desta convicção de que o Estado foi e é o pai do capitalismo, e não somente o seu aliado natural, que nós derivamos a convicção de que a destruição do Estado é a condição sine qua non do desaparecimento das classes e do não-renascimento delas.

No seu ensaio sobre O Estado Moderno, Kropotkin observa:

Pedir a uma instituição que representa um desenvolvimento histórico que ela destrua os privilégios que teve que desenvolver, é como reconhecer-se incapaz de compreender o que significa na vida das sociedades um desenvolvimento histórico. É como desconhecer esta regra geral da natureza orgânica: as novas funções exigem novos órgãos elaborados pelas mesmas funções.

Arturo Labriola, no livro supracitado, observa por sua vez:

Se o Estado é um poder conservador relativamente à classe que o domina, não é o desaparecimento desta classe o que faz desaparecer o Estado, e deste ponto de vista a crítica anarquista é muito mais exata do que a crítica marxista. Enquanto o Estado conserva a classe, a classe não desaparece. Quanto mais o Estado se torna forte, mais forte se torna a classe protegida pelo Estado, vale dizer, mais poderosa se torna a sua energia vital e mais segura a sua existência. Ora uma classe forte é uma classe mais fortemente diferenciada das outras classes. Nos limites em que a existência do Estado depende da existência das classes, o facto mesmo do Estado — se a teoria engelsiana é verdadeira — determina a indefinida existência das classes e portanto de si mesmo como Estado.

Uma grande, decisiva confirmação da nossa tese sobre o Estado gerador do capitalismo é oferecida pela U.R.S.S., na qual o socialismo de Estado favorece o surgimento de novas classes.

Camillo Berneri
(De Guerra di classe de Barcelona, 9/10/1936)

Fonte e Tradução ao português: https://ultimabarricada.wordpress.com