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Daniel Guerín. “A Plataforma Comunista Libertária de 1971”

Nota

Esta plataforma foi discutida e adotada durante uma reunião sediada em Marselha em 11 de Julho de 1971. Ela foi convocada pelo Mouvement Communiste Libertaire [MCL, Movimento Comunista Libertário], fundado por grupos e indivíduos a maioria dos quais saídos da antiga Federation Communiste Libertaire [FCL, Federação Comunista Libertária], a Jeunesse Anarchiste Communiste [JAC, Juventude Anarquista Comunista] e da Union des Groupes Anarchistes-Communistes [UGAC, União de Grupos Anarquistas-Comunistas] na sequência do Maio de 1968 e no âmbito da fusão de vários grupos locais da Organsation Révolutionnaire Anarchiste [ORA, Organização Revolucionária Anarquista]. Eu participei ativamente na discussão a respeito da versão final baseada em um rascunho proposto por Georges Fontenis. Foi publicado em novembro de 1971 in Guerre de Classes [Luta de Classes], jornal da Organisation Communiste Libertaire [OCL, Organização Comunista Libertária].

Daniel Guérin

1984

I

As revoltas individuais e coletivas pontuam a história da humanidade, que é uma sucessão de sociedades de exploração. Em todas as eras, os pensadores chegaram à uma ideia que punha em causa a sua sociedade. Mas foi com o advento da sociedade capitalista moderna que a divisão da sociedade em duas classes antagônicas fundamentais claramente apareceu, e é através da luta de classes, o motor da evolução da sociedade capitalista, que a estrada que leva da revolta à obtenção da consciência revolucionária é construída.

Hoje, por ter mudado de forma, a luta de classes é por vezes negada por aqueles que insistem seja no aburguesamento e integração da classe operária, seja no nascimento de uma nova classe trabalhadora que irá supostamente se inserir de forma natural, por assim dizer, nos centros de tomada de decisão da sociedade capitalista. De fato, os velhos estratos sociais estão desaparecendo, a polarização entre as duas classes fundamentais está se tornando mais aguda e há sempre algum lugar no mundo em que a luta de classes está sendo retomada.

Seja qual for a forma ideológica que assuma, o modo capitalista de produção representa, globalmente, uma unidade. Seja na forma que, originalmente baseada no “liberalismo”, se encaminha para um capitalismo monopolista de Estado, seja naquela de um capitalismo de Estado burocrático, o capitalismo não pode senão aumentar a exploração do trabalho a fim de tentar escapar à crise mortal que o ameaça. Massacres, o colapso geral das condições de vida, assim como a exploração e a alienação que é peculiar à este ou aquele grupo de pessoas (mulheres, jovens, minorias sexuais ou raciais etc.) são manifestações que não podem ser separadas da divisão da sociedade em duas classes: aquela que dispõe da riqueza e da vida dos trabalhadores e cria e perpetua as superestruturas (costumes, valores morais, o direito, a cultura em geral), e aquela que produz a riqueza.

O proletariado pode ser definido hoje da seguinte forma: aqueles que, em um nível ou outro, criam mais-valor ou contribuem para a sua realização. Juntam-se ao proletariado aqueles que, pertencendo à estratos não-proletários, concorrem para objetivos proletários (tais como intelectuais e estudantes).

II

A luta de classes e a revolução não são processos puramente objetivos, não são o resultado de necessidades mecânicas independentes das atividades dos explorados. A luta de classes não é simplesmente um fenômeno a ser observado: é o motor que modifica constantemente a situação e os fatos da sociedade capitalista. A revolução é sua conclusão. Esta consiste nos explorados tomando em suas mãos os instrumentos de produção e distribuição, as armas e na destruição dos centros e meios do poder estatal.

Para termos a certeza, a luta de classes é pontuada por dificuldades, falhas e derrotas sangrentas, mas a ação proletária ressurge periodicamente, mais poderosa e mais extensa.

  1. Em primeira instância, manifesta-se ao nível do confronto direto no local de trabalho. Também se manifesta no nível dos problemas da vida cotidiana, nas lutas contra a opressão das mulheres, dos jovens e das minorias; no questionamento da educação, da cultura, da arte e dos valores. Mas estas lutas nunca devem ser separadas da luta de classes. Atacar o Estado e as superestruturas significa também atacar a dominação capitalista. Lutar por melhores condições de trabalho ou por aumentos salariais significa levar a cabo uma mesma luta. Mas é evidente que colocar o problema do modo de vida, ao invés de somente aquele relativo aos níveis salariais, dá à luta um aspecto mais radical quando isso implica o desenvolvimento de um movimento de massas que demanda uma concepção totalmente nova da vida ao invés de melhorias meramente quantitativas.

  2.  A análise história torna clara uma tendência profunda, expressa pelos trabalhadores em suas lutas diretas contra o capital e o Estado, rumo à auto-organização, e as estruturas da sociedade sem classes a aparecerem embrionariamente nas formas assumidas pela ação revolucionária. A tendência rumo à uma ação autônoma pode ser vista no curso da maior parte das lutas cotidianas: greves selvagens, expropriações, várias formas de ação direta opostas à liderança burocrática, comitês de ação, comitês de base etc. Com a exigência de poder para as assembleias gerais dos trabalhadores e a insistência na revogabilidade dos delegados, o que se coloca na ordem do dia é a verdadeira autogestão.

Para nós, não há uma ruptura formal e histórico entre a ascensão do proletariado ao poder e suas lutas para alcançá-la, havendo antes um desenvolvimento contínuo e dialético de técnicas de autogestão, partindo da luta de classes e terminando com a vitória do proletariado e o estabelecimento de uma sociedade sem classes.

Um modo especificamente proletário de organização, o “poder dos conselhos”, surgiu durante períodos revolucionários como o da Comuna de Paris (1871), a Ucrânia Makhnovista (1918-1921), os conselhos operários italianos (1918-1922), a República Soviética da Baviera (1918-1919), a Comuna de Budapeste (1919), a Rebelião de Kronstadt (1921), a Revolução Espanhola (1936-1937), a Revolução Húngara (1956), a Primavera de Praga (1968) e o Maio de 1968.

O poder dos conselhos, realizando a autogestão generalizada em todos os âmbitos da atividade humana, só pode ser definido pela própria prática histórica, e qualquer tentativa de uma definição do mundo novo pode apenas ser uma aproximação, uma proposta, uma investigação.

A aparição e generalização de formas diretas de poder dos trabalhadores implica que o processo revolucionário já se encontra bastante avançado. Entretanto, deveria se considerar que nesse estágio o poder burguês está ainda longe de ser totalmente liquidado. E assim, um duplo poder provisório é estabelecido entre as estruturas revolucionárias e socialistas instauradas pelas classes laboriosas de um lado, e do outro, as forças contrarrevolucionárias.

Durante esse período, a luta de classes, longe de ser atenuada, atinge o seu clímax, e é aqui que as palavras de luta de classes assumem toda a sua nitidez: o futuro da revolução depende do resultado desta luta. Contudo, seria perigoso ver o processo conforme normas bem definidas. De fato, a natureza do poder estatal (i.e., o poder contrarrevolucionário) em sua luta contra os conselhos pode tomar diferentes formas. O que é fundamental é que o poder dos conselhos é antagônico à todo poder de Estado, uma vez que expressa a si mesmo dentro da própria sociedade por meio de assembleias gerais, cujos delegados, nas várias organizações que foram estabelecidas, não são nada senão a sua expressão e podem ser revogados a qualquer instante.

A essa altura, a autoridade e a sociedade não existem mais como entes separados, as condições máximas tendo sido realizadas para a satisfação das necessidades, tendências e aspirações dos indivíduos e grupos sociais, a humanidade tendo escapado de sua condição de objeto para tornar-se o sujeito criativo de sua própria vida.

E assim, torna-se óbvio que a revolução não pode ser feita através de intermediários: ela é o produto do movimento espontâneo da massas e não de um estado-maior de especialistas ou de uma assim denominada vanguarda que é o único elo consciente e encarregado da liderança e direção das lutas. Quando a palavra “espontâneo” é usada aqui, seu uso não deve de modo algum ser interpretado como adesão à uma suposta ideia espontaneísta que privilegia a espontaneidade das massas às custas da consciência revolucionária, que é seu complemento indispensável e que a supera. Em outras palavras, um uso incorreto da noção de espontaneidade consistiria em compará-la à uma atividade “desordenada”, “instintiva” que seria incapaz de engendrar consciência revolucionária, como foi afirmado por Kautsky e mais tarde por Lênin em seu O Que Fazer?

Não é menos óbvio que a revolução não pode ser simplesmente uma simples restruturação política e econômica da velha sociedade. Ao contrário, ao subverter de uma só vez todos os domínios pelo esmagamento das relações de produção capitalistas e do Estado, a revolução não é apenas política e econômica, mas também a todo momento cultural, e é nesse sentido que nós podemos utilizar a ideia de revolução total.

III

A verdadeira vanguarda não é este ou aquele grupo que se auto-proclama a consciência histórica do proletariado. A vanguarda consiste, de fato, naqueles trabalhadores militantes que estão na dianteira do combate ofensivo e naqueles que mantém um certo grau de consciência mesmo em períodos de refluxo.

A organização revolucionária é um lugar para encontros, trocas, informação e reflexão que permite o desenvolvimento da teoria e prática revolucionárias, que não são senão dois aspectos de um mesmo movimento. Reúne militantes que reconhecem-se como estando no mesmo nível de reflexão, de atividade e coesão. Não pode, em circunstância alguma, substituir-se ao próprio movimento proletário ou impor uma liderança sobre ele ou alegar ser sua consciência plenamente desenvolvida.

Por outro lado, deve se esforçar por sintetizar as experiências de luta, ajudando a que se adquira o mais alto grau possível de consciência revolucionária e a maior coerência possível desta consciência, que deve ser vista não como um objetivo ou como algo que existe em abstrato, mas como um processo.

Em resumo, o papel da organização revolucionária é apoiar a vanguarda proletária e auxiliar na auto-organização do proletariado ao desempenhar – seja coletivamente ou pela intervenção de militantes – o papel de propagandista, catalizador e referência, e ao permitir que os revolucionários que a compõem façam intervenções coordenadas e convergentes nas áreas de informação, propaganda e apoio de ações exemplares.

Uma consequência desta concepção de organização revolucionária é sua missão de desaparecer, não através de uma decisão mecânica, mas quando deixa de corresponder às funções que a justificam. Ela dissolver-se-á, então, na sociedade sem classes.

A práxis revolucionária é levada a cabo dentro das massas, e a elaboração teórica só tem sentido se estiver sempre conectada às lutas do proletariado. Dessa maneira, a teoria revolucionária é o oposto da verborragia ideológica que oculta a ausência de qualquer práxis proletária verdadeira.

Isso significa que o propósito da organização revolucionária é reunir militantes de acordo com o que foi enunciado acima e independentemente de qualquer rótulo – marxista, anarquista, conselhista ou comunista libertário -, o rótulo servindo de fato para encobrir a compreensão elitista e de cima para baixo da vanguarda que é naturalmente achada entre os leninistas, mas também entre os assim chamados anarquistas.

A organização revolucionária não invoca exclusivamente qualquer teórica em particular ou qualquer organização preexistente, embora reconheça as contribuições positivas daqueles que sistematizaram, refinaram e divulgaram as ideias extraídas do movimento de massas. Ela se posiciona, antes, como herdeira das várias manifestações da corrente dos trabalhadores anti-autoritários da I Internacional, uma corrente que é historicamente conhecida sob o nome de anarquismo comunista ou comunismo libertário, uma corrente que as chamadas correntes anarquistas tem, infelizmente, muitas vezes caricaturado de forma grosseira.

A organização revolucionária é autogerida. Em suas estruturas e funcionamento, ela deve prefigurar a sociedade não-burocrática que verá a distinção entre aqueles que dão as ordens e aqueles que as seguem desparecer, e que estabelecerá delegações somente para casos de tarefas técnicas e com o corretivo da revogabilidade permanente.

O conhecimento técnico e as competências de todos os tipos devem ser largamente difundidas o máximo possível para garantir uma rotação efetiva das tarefas. A discussão e elaboração de ideias deve, portanto, ser tarefa de todos os militantes e, mais ainda que as normas organizacionais indispensáveis, que podem ser sempre revistas, é o nível de coerência e a consciência das responsabilidades alcançada por todos os envolvidos que configura o melhor antídoto contra qualquer desvio burocrático.

Traduzido e adaptado para o português por Alexandre Guerra a partir da versão em inglês disponível no site: https://theanarchistlibrary.org/library/organisation-communiste-libertaire-the-libertarian-communist-platform-of-1971