Anarquismo, militarismo e guerra civil

Como os anarquistas acreditam que os patrões resistirão à uma revolução, decorre que nós aceitamos a necessidade de uma força armada para defender a revolução. Mas os anarquistas também se opõem ao militarismo, que inclui exércitos permanentes controlados pelo Estado com oficiais que tenham privilégios especiais como ração adicional, alojamentos melhores, continência etc. Então que alternativas os anarquistas propõem?

Os anarquistas defendem milícias onde os oficiais são eleitos e revogáveis e a disciplina é acordada por todos na unidade. Isto não é simplesmente uma teoria, mas foi posto em prática por anarquistas no curso de várias revoluções. A Revolução Russa viu uma surgir uma força de influência anarquista, o Exército Revolucionário Insurgente da Ucrânia – também conhecido como Exército Makhnovista, que liberou a Ucrânia oriental. Eles fornecem um tal exemplo.

Eu seu artigo ‘Os Dois Outubros’, o anarquista russo Piotr Arshinov descreve como em abril de 1917, “os grandes proprietários rurais começaram em todo lado a evacuar o campo, fugindo do campesinato insurgente e procurando proteção por suas posses”. Através da ação direta, “a questão agrária foi virtualmente resolvida pelos camponeses pobres já em junho-setembro de 1917”. Enquanto os latifundiários fugiam, os camponeses tomaram as terras e “a Rússia revolucionária toda foi coberta por uma vasta rede de sovietes de operários e camponeses que começaram a funcionar como orgãos de autogestão”.

Os decretos aprovados pelo governo bolchevique nos meses que se seguiram à outubro ‘legalizaram’ essas aquisições. Isto foi parte do processo pelo qual os bolcheviques se livraram do poder dos orgãos independentes de autogestão operária como os Sovietes (conselhos operários eleitos) e dos Comitês de Fábrica. ‘Legalizar’ o que os trabalhadores já tinham conquistado foi um jeito de promover o direito do Estado central de ter a última palavra sobre a classe trabalhadora.

A atitude bolchevique em relação à classe trabalhadora é talvez melhor demonstrada pelo discurso de Trotsky no 9º Congresso do Partido de 1920, onde ele declarou que “A classe trabalhadora não pode ser deixada vagando por toda a Rússia. Eles devem ser jogados aqui e ali, nomeados, comandados, tal como soldados”. “O trabalho compulsório irá atingir o mais alto grau de intensidade durante a transição do capitalismo ao socialismo”. “Os desertores do trabalho deverão ser alistados em batalhões punitivos ou colocados em campos de concentração”.

Estas citações demonstram qual era o pensamento dos bolcheviques quando eles dissolveram os sovietes, fecharam os comitês de fábrica ou prenderam e até mesmo executaram grevistas. Mas se é assim que eles enxergavam o trabalhador na fábrica, e quanto ao ‘trabalhador uniformizado’ no Exército Vermelho?

Em 1917, o Exército Czarista havia desmoronado. Longe do exército se opor à revolução, as unidades militares estavam frequentemente no coração de sua defesa. Não os oficiais, como é evidente, estes eram em sua maioria opostos à revolução. Mas em 1917, a disciplina militar tradicional se desintegrou quando os soldados abandonaram o fronte, recusaram-se a obedecer às ordens e elegeram os comitês de soldados. Se os soldados tivessem obedecido à seus oficiais em outubro ou fevereiro, a revolução provavelmente teria sido derrotada. Portanto, o fim da disciplina militar de cima para baixo (ou “burguesa”) foi essencial para a revolução.

Esse colapso da antiga disciplina pode ter sido essencial para a revolução, mas uma vez que os bolcheviques estavam no poder, isto operou contra eles. Eles não queriam um exército em que as unidades pudessem se recusar a cumprir uma ordem como o esmagamento de uma rebelião camponesa ou interromper uma greve. Assim, em julho de 1918, Trotsky (o comandante bolchevique do Exército Vermelho) reintroduziu todos os métodos antigos do exército burguês. Ele até renomeou antigos oficiais Czaristas.

Paralelamente, a pena de morte por desobediência sob combate foi reintroduzida; assim como continências, formas especiais de tratamento, alojamentos separados e privilégios para os oficiais. Oficiais eram nomeados ao invés de eleitos. Trotsky argumentou que “a base eletiva é politicamente inútil e tecnicamente inconveniente e já foi anulada por decreto”.

Estas mudanças foram profundamente impopulares para as baixas patentes do exército. Isto, junto com a supressão bolchevique da revolução, fez com que o Exército Vermelho tivesse uma das mais altas taxas de deserção de qualquer exército da história.

Execuções em larga escala e ‘Batalhões de Punição’ foram usados para obrigar os soldados a obedecerem às ordens. Além disso, a relação do Exército Vermelho com os camponeses e operários locais era o de um exército de ocupação. Ele apreendia os suprimentos de que necessitava e era frequentemente usado para reprimir greves e insurreições locais.

A revolução na Ucrânia

Como em outras partes da Rússia rural, o partido bolchevique não teve presença significativa na parte oriental da Ucrânia antes da revolução de outubro. No entanto, nesse período, os camponeses e operários das cidades ocuparam a terra, assumiram os locais de trabalho e montaram suas próprias unidades militares.

A figura mais proeminente na coordenação regional de tudo isso foi o anarquista Nestor Makhno, que havia sido libertado da prisão após a Revolução de Fevereiro. Trabalhando com anarquistas na cidade de Hulyai Pole, ele construiu laços com os operários, camponeses e até mesmo com as tropas de ocupação sérvias. Eles expropriaram os latifundiários e montaram unidades de milícia.

Imediatamente após outubro, essas milícias deixaram Hulyai Pole para desarmar os cossacos nas cidades próximas, expropriaram os fundos dos bancos e os distribuíram aos camponeses. Eles também trocaram comida por tecidos com uma fábrica de Moscou. Nessa época, as primeiras comunas agrícolas foram criadas nas proximidades de Hulyai Pole.

Uma má paz

Então, pela primeira vez, a intervenção externa esmagou o que tinha sido realizado. Os bolcheviques assinaram o tratado de Brest-Litovsk que, entre outras coisas, entregou o extremo-leste da Ucrânia ao exército austríaco. Os austríacos reprimiram a revolução, forçando os insurgentes a recuar e a conduzir uma guerra de guerrilha. Eles o fizeram com grande sucesso e é a partir desse período que o exército ficou conhecido como Exército Makhnovista.

Na Makhnovtchina, os oficiais eram escolhidos popularmente entre as fileiras dos revolucionários. Era um exército voluntário – sua falta era sempre de armas e não de combatentes. Ele contava com a solidariedade dos camponeses como apoio, tanto em termos de fornecimento direto de alimentos quanto para direcioná-los aos kulaks locais (agricultores ricos) que poderiam aguentar a perda de “duas ou três ovelhas para fazer uma sopa para os insurgentes”.

Não possuía nenhuma disciplina burguesa do Exército Vermelho. O próprio fato de ter sido baseado no espírito revolucionário, e não no medo, significava que era uma força de combate muito eficaz e inovadora. Um dos generais do Exército Vermelho que o enfrentou mais tarde escreveu que “a composição específica do exército precisava de um comandante completamente confiável, esperto, experiente e corajoso, e assim eram os makhnovistas”.

Finalmente, e mais importante, a Makhnovtchina não era dirigida por um governo central, mas respondia aos sovietes de camponeses e operários locais. Como tal, ela nunca poderia ser uma ferramenta de repressão da maneira que o Exército Vermelho era.

O exército makhnovista existiu até 1921. Nesse período, as duas maiores intervenções ‘brancas’ (pró-czaristas) da Guerra Civil ocorreram no leste da Ucrânia, as dos generais Wrangel e Denikin. Em ambos os casos, os makhnovistas tiveram um papel fundamental na derrota de seus avanços.

Sua organização de milícias e inovações como metralhadoras montadas em carroças puxadas a cavalo permitiram evitar grandes concentrações de tropas brancas e esmagar a retaguarda do inimigo. Em uma ocasião, eles avançaram mais de 200 milhas em três dias. Alguns historiadores acreditam que sem sua ação, Petrogrado teria caído.

Nessas lutas, eles se aliaram ao Exército Vermelho, às vezes operando tecnicamente como parte dele. Eles tentaram chegar a um acordo pelo qual, em troca de não aceitar os desertores do Exército Vermelho, seus sovietes poderiam funcionar independentemente do Estado bolchevique. Parece que tanto Lênin quanto Trotsky equacionaram essa ideia.

Traição

Mas em todas as três ocasiões, a aliança terminou quando os brancos foram derrotados e os bolcheviques lançaram ataques surpresa aos makhnovistas. Os makhnovistas que foram detidos foram ou executados ou presos, o número de aprisionados foi de dezenas de milhares. O mesmo destino aguardava os delegados civis dos sovietes independentes, e pelo menos um anarquista deportado dos EUA em 1919 (Bogush) foi executado pelos bolcheviques quando ele tentou estabelecer contato com os makhnovistas.

Os makhnovistas foram finalmente suprimidos após a Guerra Civil, quando os bolcheviques concentraram um grande número de tropas contra eles e intensificaram ações brutais contra os camponeses que os abrigavam. Essa estratégia de contra-insurgência, que os EUA usaram posteriormente no Vietnã, teve êxito devido ao tamanho relativamente pequeno e o isolamento do leste da Ucrânia.

No entanto, sua existência demonstrou que uma milícia anarquista organizada poderia enfrentar e derrotar forças convencionais maiores. Talvez essa ameaça de um bom exemplo tenha sido a principal razão pela qual os bolcheviques se esforçaram tanto para esmagá-los.

Tradução ao português: Alexandre Guerra e Rafael V. da Silva

Fonte: http://struggle.ws/ws/2000/makhno59.html