Suplemento à Plataforma Organizacional: Questões e Respostas – Grupo de Anarquistas Russos no Estrangeiro [Dielo Truda]
SUPLEMENTO À PLATAFORMA ORGANIZACIONAL
QUESTÕES E RESPOSTAS
GRUPO DE ANARQUISTAS RUSSOS NO ESTRANGEIRO [Dielo Truda]
Como era de se esperar, “A Plataforma Organizacional da União Geral dos Anarquistas” provocou um vivo interesse em vários militantes do movimento anarquista russo. Enquanto uns partilham completamente sua ideia geral e suas teses fundamentais, outros formulam críticas e exprimem dúvidas em relação a algumas de suas teses.
Saudamos tanto a atitude positiva quanto aquela de crítica franca. Pois, tanto para a obra de criação de um programa geral anarquista quanto de uma organização geral anarquista, a crítica sincera, ponderada e substancial é tão importante quanto a iniciativa criativa e positiva.
As questões que reproduzimos a seguir concernem precisamente a esse tipo de crítica séria e necessária, e é com satisfação que a recebemos. Ao nos enviar estas questões, a autora [1] , militante de longa data e muito estimada em nosso movimento, acompanhou-as de uma carta, em que dizia:
Evidentemente, a Plataforma Organizacional foi elaborada para ser discutida por todos os anarquistas. Antes de formar a minha opinião definitiva sobre esta Plataforma e, talvez, falar dela na imprensa, gostaria que me elucidassem algumas questões que não estão ali suficientemente desenvolvidas. É bem possível que outros leitores encontrem na Plataforma diversas imprecisões e que certas objeções não estejam embasadas senão em mal-entendidos. É por esta razão que, de início, gostaria de fazer a vocês uma série de questões. Seria muito importante que respondessem a elas de maneira clara, pois suas respostas permitirão apreender o espírito geral da Plataforma. Talvez vocês acreditem ser necessário respondê-las em sua revista.
Concluindo sua carta, a companheira acrescenta que quer evitar a polêmica nas colunas da revista Dielo Truda. Por isso, enfatiza que quer, antes de tudo, elucidar certos pontos essenciais da Plataforma.
Esse modo de ver as coisas é muito justo. É extremamente fácil recorrer à polêmica para pronunciar-se contra uma opinião com a qual se está, ou se crê estar, em desacordo. É ainda mais fácil limitar-se exclusivamente a uma obra de polêmica sem se preocupar em formular, no lugar da opinião criticada, uma outra tese positiva. O que é infinitamente mais difícil é analisar bem a nova opinião, compreendê-la, a fim de estabelecer, em seguida, um ponto de vista bem fundamentado sobre ela. Foi justamente esta última via, mais difícil, a escolhida pela autora das questões abaixo.
Eis as questões.
1.) O ponto central da Plataforma é a união da maioria dos militantes do movimento anarquista com base em uma linha tática e política comum; a formação de uma União Geral. Sendo vocês federalistas, creio que evidentemente têm em mente uma União que congregará agrupamentos autônomos. Ora, vocês têm em mente, igualmente, a existência de um Comitê Executivo, que será encarregado da “orientação de ideias e organizacional das atividades das organizações isoladas”. Este tipo de organização existe em todos os partidos, mas ele só é possível se se admite o princípio da maioria. Na organização que vocês propõem, cada grupo terá a liberdade de definir sua própria tática e de ter sua posição em relação a cada questão? Se sim, então a unidade terá apenas um caráter puramente moral (como foi e ainda é no movimento anarquista). Se, ao contrário, vocês pretendem contar com uma unidade organizacional, ela será forçosamente coercitiva. E, assim, se vocês admitem o princípio da maioria no seio de vossa organização, por que razão o rejeitariam na construção social?
Seria desejável que precisassem melhor a maneira que concebem a união federalista, o papel dos congressos e o princípio da maioria.
2.) Ao falar do “regime livre dos sovietes”, que funções vocês supõem que estes sovietes deverão exercer para tornarem-se “os primeiros passos rumo à construção não estatista”? Quais serão suas responsabilidades? Suas decisões serão obrigatórias?
3.) Os anarquistas deverão promover a “condução dos acontecimentos pelas ideias anarquistas”, diz a Plataforma. Esta noção não está suficientemente clara. Significa, simplesmente, que os anarquistas farão o possível para que as organizações (sindicais, comunitárias, cooperativas etc.) que construirão a nova ordem estejam imbuídas das ideias anarquistas? Ou significa que os anarquistas encarregar-se-ão eles próprios desta construção? Neste último caso, em que sentido isso se distinguiria da “ditadura de partido”?
O esclarecimento dessa questão tem uma enorme importância. Ainda mais porque ela envolve o papel dos anarquistas nos sindicatos. O que significa a expressão: “participar do movimento sindical revolucionário como uma força organizada”? Significa, simplesmente, que os companheiros que trabalham nos sindicatos deverão colocar-se de acordo para estabelecer uma linha política? Ou significa que o Comitê Executivo anarquista estabelecerá a tática do movimento operário, estatuirá sobre as greves, manifestações etc., e que os anarquistas que militam nos sindicatos esforçar-se-ão para obter postos de comando e, em função de sua autoridade, impor suas decisões às bases dos sindicatos? A indicação da Plataforma, de que os agrupamentos anarquistas que militam nos meios sindicais serão “orientados em sua atividade por uma organização geral anarquista”, desperta todos os tipos de dúvidas a este respeito.
4.) No capítulo sobre a defesa da revolução, vocês dizem que o exército será subordinado aos “organismos operários e camponeses comuns a todo o país, colocados pelas massas, no momento da revolução, nos postos dirigentes da vida econômica e social”. Em linguagem habitual, isso se chama “autoridade civil” dos eleitos. O que isso significa para vocês? É evidente que uma organização que dirige de fato toda a vida e dispõe de um exército não é outra coisa senão um poder de Estado. Este ponto tem uma importância tão grande que os autores da Plataforma têm o dever de deter-se mais demoradamente sobre ele. Se se trata de uma “forma transitória”, por que a Plataforma rejeita a ideia de “período transitório”? E, se se trata de uma forma definitiva, então, por que a Plataforma é anarquista?
5.) Há questões que, embora não tenham sido tratadas na Plataforma, desempenham, contudo, um papel importante nos desacordos entre os companheiros. Cito, a seguir, uma destas questões.Suponhamos que uma região encontre-se, de fato, sob a influência dos anarquistas. Qual será a atitude destes em relação aos outros partidos? Os autores da Plataforma admitem a possibilidade da violência contra um inimigo que não recorre às armas? Ou, então, proclamam, em conformidade com a ideia anarquista, a completa liberdade de expressão, de imprensa, de organização etc., para todos? (Há alguns anos, tal questão pareceria deslocada. Todavia, atualmente, certas opiniões que me são conhecidas impedem-me de estar segura da resposta.)
Em geral, vocês admitem que suas próprias decisões sejam implementadas por meio da força?
Os autores da Plataforma admitem o exercício do poder, mesmo que por um único instante?
Quaisquer que sejam as respostas do grupo a todas essas questões, não posso silenciar sobre uma ideia da Plataforma que se encontra em plena contradição com o comunismo anarquista, que é por ela reivindicado.
Vocês supõem que, uma vez abolidos o salariato e a exploração, restarão, apesar de tudo, alguns elementos não trabalhadores, os quais vocês excluem da união comum solidária dos trabalhadores; eles não terão direito à sua parte do produto comum. Ora, foi sempre o princípio “A cada um segundo suas necessidades” que esteve na própria base do anarquismo; e é este princípio que o anarquismo sempre considerou a melhor garantia da solidariedade social. Quando se perguntava aos anarquistas: “Que farão com os preguiçosos?”, eles respondiam: “É preferível alimentar, por muito pouco, alguns preguiçosos, do que introduzir, somente em função de sua existência, um princípio falso e nocivo na vida da sociedade”. Agora, por razões políticas, vocês criam uma espécie de categoria de preguiçosos e, por vias repressivas, pretendem fazê-los morrer de fome. Todavia, para além do aspecto moral, vocês pensaram a que isso conduziria? Será necessário identificar, para toda pessoa que não trabalha, as razões pelas quais ela não o faz; será preciso saber ler os espíritos e conhecer as convicções. Se alguém se recusa a fazer um determinado trabalho, será preciso investigar as razões desta recusa. Será necessário ver se não se trata de sabotagem ou contrarrevolução. Resultado: a espionagem, o trabalho coercitivo, a “mobilização do trabalho” e, para cúmulo do absurdo, os produtos indispensáveis para a vida nas mãos das autoridades, que poderão fazer a oposição morrer de fome! A ração como meio de luta política! Será possível que o que vocês viram na Rússia não os demonstrou toda a abominação de tal sistema? E não falo do prejuízo que ele causaria aos destinos da revolução: semelhante violação gritante da solidariedade social não poderia deixar de produzir perigosos inimigos.
É nesse problema que se encontra a chave de toda a concepção anarquista da organização social. Fazer concessões sobre este ponto significa que rapidamente haveria disposição para abandonar todas as outras concepções anarquistas, pois a maneira que vocês colocam o problema torna absolutamente impossível toda organização social não estatista.
É possível que eu tenha de escrever na imprensa sobre a Plataforma. Mas prefiro adiar até que todas essas questões tenham sido elucidadas.
* * *
Assim, a Plataforma Organizacional suscitou uma série de questões substanciais, as quais foram expostas na mencionada carta. São elas, notadamente: 1.) A questão da maioria e da minoria no movimento anarquista; 2.) A questão da estrutura e das características essenciais do regime livre dos sovietes; 3.) A questão da condução ideológica dos acontecimentos e das massas; 4.) A questão da defesa da revolução; 5.) A questão da liberdade de imprensa e de expressão; 6.) A questão do entendimento do princípio anarquista “A cada um segundo suas necessidades”. Procedamos na ordem.
1.) A questão da maioria e da minoria no movimento anarquista. A autora coloca a questão, relacionando-a à nossa ideia de um Comitê Executivo da União. Se o Comitê Executivo da União terá, para além de outras funções de caráter executivo, também aquela de “orientação de ideias e organizacional das atividades das organizações isoladas”, esta orientação não será coercitiva? Depois: os agrupamentos aderentes à União serão livres para estabelecer sua tática e determinar sua posição em relação a cada questão? Ou serão obrigados a submeter-se à tática geral e às posições gerais estabelecidas pela maioria da União?
Observemos, antes de tudo, que, do nosso ponto de vista, o Comitê Executivo da União não poderá ser um órgão encarregado de poderes com qualquer caráter coercitivo, como é o caso nos partidos políticos centralistas. O Comitê Executivo da União Geral dos Anarquistas será um órgão que exerce as funções de caráter geral da União. Em vez de “Comitê Executivo”, ele poderia chamar-se “Secretariado Principal da União”. Entretanto, o nome “Comitê Executivo” é preferível, pois exprime melhor a ideia da função executiva e da iniciativa. Sem restringir, no que quer que seja, os direitos dos grupos isolados, o Comitê Executivo poderá conduzir sua atividade de orientação de ideias e organizacional. Haverá sempre, na União, grupos que se sentirão embaraçados por diferentes questões de tática, de modo que uma assistência em termos de ideias ou de organização será sempre necessária a eles. Não é preciso mencionar que o Comitê Executivo será completamente indicado para esta assistência, pois será ele que, graças à sua situação e às suas funções, estará melhor informado quanto à linha tática ou organizativa adotada pela União em relação às diversas questões.
Mas se, apesar de tudo, algumas organizações manifestarem o desejo de seguir sua própria linha tática, o Comitê Executivo ou a União inteira poderá impedi-las de fazer isso? Ou seja: a linha tática e política da União será estabelecida pela maioria, ou todo agrupamento terá o direito de agir a seu bel-prazer e, com isso, a União terá várias linhas?
Como regra, estimamos que a União, em seu conjunto, deve ter uma única linha tática e política. Com efeito, a União é projetada precisamente com o objetivo de pôr fim à dispersão e à desorganização do movimento anarquista, visando estabelecer, em vez de uma grande quantidade de linhas táticas, que desembocam em lutas intestinas, uma linha tática geral, que permitirá a todos os elementos anarquistas agir em uma única direção e alcançar o objetivo com maior sucesso. Caso contrário, a União perderia um dos principais motivos de sua existência.
Todavia, pode haver momentos em que as opiniões dos membros da União sobre uma ou outra questão dividam-se, o que daria origem à formação de uma maioria e de uma minoria. Tais casos ocorrem frequentemente na vida de todas as organizações e de todos os partidos. Habitualmente, acaba-se por encontrar uma saída para a situação.
Estimamos, de início, que, em nome da unidade da União, a minoria, nestes casos, deverá fazer concessões em proveito da maioria. Isso é fácil quando as divergências de opinião entre a minoria e a maioria não são importantes.
Se, contudo, a minoria considerar impossível sacrificar seu ponto de vista, então surgirá a perspectiva de haver, no seio da União, duas opiniões e duas táticas diferentes: uma da maioria e outra da minoria. Neste caso, a situação deverá ser examinada por toda a União. Se, no fim da discussão, a existência de dois pontos de vista diferentes relativos à mesma questão for julgada possível, ela será aceita como um fato consumado.
Enfim, sendo impossível todo entendimento entre a maioria e a minoria, no que diz respeito às questões políticas ou táticas que as divide, uma cisão produzir-se-á; a minoria separar-se-á da maioria e criará uma organização à parte.
Tais são as três saídas possíveis no caso de um desacordo entre a minoria e a maioria. Em todos eles, a questão será resolvida não pelo Comitê Executivo – que, repitamo-lo, será apenas um órgão executivo da União –, mas por toda a União em seu conjunto, numa conferência ou num congresso da União.
2.) O regime livre dos sovietes. Repudiamos o atual sistema dos sovietes (bolchevique), pois ele representa somente uma certa forma política do Estado. Os sovietes de deputados operários e camponeses são uma organização política do Estado guiada por um partido político. Propomos, distintamente, os sovietes de produção e consumo de operários e camponeses. Tal é o sentido da palavra de ordem: regime livre dos sovietes e dos comitês de fábricas. Entendemos por este regime um sistema econômico e social no qual todos os ramos e funções da vida econômica e social estão concentrados nas mãos das organizações de produção e de consumo dos trabalhadores, as quais devem dirigir estas funções com o objetivo de satisfazer as necessidades de toda a sociedade de trabalhadores. A federação destas organizações e seus sovietes liquida o Estado e o sistema capitalista; ela é o principal fundamento do regime livre dos sovietes. É verdade, este regime não representa imediatamente o ideal completo da comuna anarquista, mas é a primeira manifestação, a primeira expressão prática desta comuna, e abre a era da criação livre, não estatista, dos trabalhadores.
Em nossa opinião, no que diz respeito às decisões relativas às diferentes esferas da vida econômica e social, os sovietes das organizações operárias e camponesas ou os comitês de fábricas as fazem realizar; não por meio da violência ou dos decretos, mas em comum acordo com as massas trabalhadoras, as quais participam diretamente destas tomadas de decisão. Todavia, essas decisões devem ser obrigatórias para todos aqueles que as votarem e sancionarem.
3.) Os anarquistas conduzirão as massas e os acontecimentos pelas ideias anarquistas. Não se pode, e nem se deve, em qualquer caso, entender a ação de conduzir os acontecimentos revolucionários e o movimento revolucionário das massas pelas ideias como uma aspiração dos anarquistas a tomar em suas mãos a edificação da nova sociedade. Esta edificação não pode ser realizada senão por toda a sociedade de trabalhadores; tarefa esta que só pertence a ela, sendo que toda tentativa de tomar-lhe este direito deve ser considerada antianarquista. A questão da condução pelas ideias não é uma questão relativa à edificação socialista, mas à influência ideológica e política exercida sobre a marcha revolucionária dos acontecimentos políticos. Não seríamos revolucionários nem combatentes se não nos interessássemos pelo caráter e pela tendência da luta revolucionária das massas. E, visto que o caráter e a tendência desta luta são determinados, não apenas por fatores objetivos, mas também por elementos subjetivos – isto é, pela influência de diversos agrupamentos políticos –, nosso dever é fazer tudo o que for possível para que a influência ideológica do anarquismo sobre a marcha da revolução seja elevada ao máximo grau.
A atual “época de guerras e revoluções” coloca, com excepcional acuidade, o grande dilema: os acontecimentos revolucionários evoluirão sob a influência das ideias estatistas (mesmo que socialistas) ou sob a influência das ideias não estatistas (anarquistas). E, porquanto estamos firmemente convictos de que a tendência estatista levará a revolução ao fracasso, e as massas a uma nova escravidão, nossa tarefa decorre disso com uma lógica implacável: aquela de fazer todos os esforços para que a revolução seja orientada pelos anarquistas. Ora, o antigo método de nossa ação – o método artesanal de pequenos agrupamentos dispersos – não apenas não realizará esta tarefa, como, ao contrário, a comprometerá. É preciso, então, proceder por um novo método. É preciso organizar as forças para a liderança das ideias anarquistas sobre a marcha dos acontecimentos. Em vez de uma influência intermitente de pequenas e esparsas ações, é necessário que ela torne-se um fator constante e poderoso. Isso, em nossa opinião, só será possí¬vel sob a condição de que os melhores militantes do anarquismo, tanto no campo teórico quanto prático, organizem-se em um coletivo capaz de agir vigorosamente e que esteja bem assentado do ponto de vista ideológico e tático: a União Geral dos Anarquistas. É nesse mesmo sentido que se deve compreender a ação de conduzir pelas ideias o sindicalismo revolucionário. Participar organizadamente do movimento sindical significa nele envolver-se como portadores de uma ideologia determinada e de um plano de trabalho fixado, trabalho este que deve estar rigorosamente em consonância com todos os anarquistas que trabalham nos sindicatos. A União não se ocupará absolutamente de estabelecer a tática do movimento operário ou de planejar as greves ou as manifestações. Mas ela tenderá a disseminar nos sindicatos suas ideias relativas à tática revolucionária da classe trabalhadora e aos diversos acontecimentos; isso constitui um de seus direitos inalienáveis. Todavia, durantes os esforços de propagação de suas ideias, os anarquistas deverão estar rigorosamente de acordo, tanto entre si quanto com a posição da organização geral anarquista a qual pertencem e em nome da qual realizam o trabalho ideológico e organizacional nos sindicatos. A maneira organizada de conduzir o trabalho anarquista nos sindicatos e a coordenação desta ação nada têm em comum com os procedimentos autoritários.
4.) A objeção que a autora faz à tese do programa sobre a defesa da revolução fundamenta-se, mais do que qualquer outra, num mal-entendido.
Tendo ressaltado a necessidade e o caráter inevitável, para os trabalhadores, de criar, num período de guerra civil, seu próprio exército revolucionário, a Plataforma afirma, ao mesmo tempo, que este exército deve estar subordinado às organizações produtivas e dirigentes de operários e camponeses.
A subordinação do exército a estas organizações não significa, de modo algum, a ideia de uma autoridade civil dos eleitos. No entanto, um exército, ainda que seja o mais revolucionário e popular, por seu espírito e seu nome, não pode existir e agir por si mesmo sem que esteja sob a responsabilidade de alguém. Sendo um órgão de defesa dos direitos e das posições revolucionárias dos trabalhadores, o exército deve, por isso mesmo, estar completamente subordinado aos trabalhadores e ser por eles dirigido do ponto de vista político. (Dizemos do ponto de vista político, pois quanto à direção militar e estratégica, ela não pode ser efetuada de outro modo senão por órgãos militares, encontrando-se no próprio exército e subordinados às organizações operárias e camponesas dirigentes.)
Mas a quem o exército poderá estar direta e politicamente subordinado? Os trabalhadores não estarão representados por um organismo único, mas por múltiplas organizações econômicas. É precisamente a estas organizações, na pessoa de seus órgãos de unificação federais, que o exército estará subordinado. O caráter e as funções sociais destes órgãos foram definidos no início das presentes respostas.A ideia do exército revolucionário dos trabalhadores pode ser rejeitada ou reconhecida. Todavia, se a necessidade do exército for reconhecida, então o princípio da subordinação deste exército às organizações operárias e camponesas deve igualmente ser. Não vemos outra solução possível para esta questão.
5.) Da liberdade de imprensa, de expressão, de organização etc. O proletariado vitorioso não deverá impedir a liberdade de expressão e de imprensa, nem mesmo dos inimigos e dos opressores de véspera, vencidos pela revolução. É ainda menos admissível impedir a liberdade de imprensa e de expressão dos agrupamentos socialistas revolucionários e anarquistas que se encontram nas fileiras do proletariado vitorioso.
A expressão e a imprensa livres são indispensáveis para os trabalhadores, não apenas para que esclareçam e compreendam melhor suas tarefas na atividade construtiva econômica e social, mas também para que distingam melhor as características essenciais, os argumentos, os planos e as intenções de seus inimigos.
Não é verdade que a imprensa capitalista e social-oportunista poderá perverter os trabalhadores revolucionários. Estes últimos saberão sempre decifrar e desvelar a imprensa mentirosa e respondê-la devidamente. A liberdade de imprensa e de expressão só amedronta aqueles que, como os capitalistas e os comunistas, vivem de pérfidas maquinações, as quais eles são obrigados a esconder dos olhos das vastas massas trabalhadoras. Quanto aos trabalhadores, a liberdade de expressão far-lhes-á um bem enorme. Ela permitir-lhes-á compreender tudo, julgar tudo por si mesmos; tornará mais profunda sua consciência e mais eficazes seus atos.O monopólio da imprensa e da expressão ou sua limitação forçada pelos dogmas de um único partido acabam com toda confiança nos monopolizadores e em sua imprensa. Se a livre expressão é sufocada, isso ocorre porque se quer esconder a verdade; coisa demonstrada de maneira contundente pelos bolcheviques, cuja imprensa apoia-se nas baionetas e é lida, sobretudo, por necessidade, por falta de qualquer outra.
Todavia, em alguns momentos específicos, a imprensa – ou melhor, os abusos da imprensa – poderá ser restringida, por motivos de utilidade revolucionária. Como exemplo, citemos um episódio da época revolucionária na Rússia.
Durante todo o mês de novembro de 1919, a cidade de Ekaterinoslav encontrava-se nas mãos do exército insurrecional makhnovista. Todavia, ao mesmo tempo, ela estava cercada pelas tropas de Denikin, que, tendo entrincheirado-se na margem esquerda do Dnieper, na região das cidades de Amur e Nijnedneprovsk, bombardeavam continuamente Ekaterinoslav com os canhões de seus trens blindados. E, no mesmo instante, um grupo denikiniano, com o general Slastchev à frente, avançava do norte, do lado de Krementchug, rumo a Ekaterinoslav.
Nessa época, eram publicados em Ekaterinoslav, em virtude da liberdade de expressão, os seguintes jornais: Putsk Svobode (A Via para a Liberdade), órgão dos makhnovistas; Narodovlastie (O Poder do Povo), órgão dos socialistas revolucionários de direita; Borotba (A Luta), órgão dos socialistas revolucionários ucranianos de esquerda; Zvezda (A Estrela), órgão dos bolcheviques. Só os cadetes, que eram então os chefes espirituais do movimento denikiniano, não contavam com um periódico. Pois bem, no caso de os cadetes terem desejado publicar, naquele momento, em Ekaterinoslav, seu jornal – que, sem nenhuma dúvida, teria desempenhado um papel auxiliar nas operações de Denikin –, deveriam os trabalhadores revolucionários e os insurretos conceder a eles o direito de publicação, mesmo num momento em que seu papel militar primordial nos acontecimentos era evidente? Estimamos que não.
No período da guerra civil, casos semelhantes podem várias vezes ocorrer. Nestes casos, os operários e os camponeses devem guiar-se não pelo princípio geral da liberdade de imprensa e de expressão, mas pelo papel que os órgãos inimigos possuem na luta militar em curso.
Todavia, em geral, com exceção dos casos extraordinários (a guerra civil), os trabalhadores vitoriosos devem conceder a liberdade de expressão e de imprensa, tanto às posições de esquerda quanto às de direita. Esta liberdade será um orgulho na sociedade de trabalhadores livres.
Os anarquistas admitem a violência revolucionária na luta contra o inimigo de classe. Eles conclamam os trabalhadores a isso. Mas jamais consentem em exercer o poder, mesmo que por um único instante, nem em impor suas decisões às massas pela força. Seus meios, sob este aspecto, são: a propaganda, a força de opinião, a argumentação por meio da palavra e dos escritos.
6.) A interpretação justa do princípio anarquista “De cada um segundo suas possibilidades, a cada um segundo suas necessidades”.
Sem dúvida alguma, este princípio é a pedra angular do comunismo anarquista (ver a Plataforma). Nenhum outro princípio social, econômico, social e jurídico corresponde ao ideal do comunismo anarquista tanto quanto ele. A Plataforma também diz que “a revolução social, encarregando-se da reconstrução de toda a ordem atual, assumirá para si o dever de ocupar-se das necessidades vitais de todas as pessoas”.
Entretanto, essa é a declaração de princípio geral, no que diz respeito ao problema do regime anarquista. É preciso distingui-la das necessidades práticas dos primeiros dias da revolução social. Como demonstraram as experiências da Comuna de Paris e da Revolução Russa, as classes não trabalhadoras foram derrotadas, mas não definitivamente. Só uma ideia as preocupava nos primeiros momentos: reunir suas forças, derrubar a revolução e restabelecer os privilégios perdidos.
Nessas condições, seria extremamente arriscado e mortalmente perigoso para a revolução repartir os produtos de que disporia o país revolucionário de acordo com o princípio “A cada um segundo suas necessidades”. Seria duplamente perigoso, pois, além do apoio que isso daria às classes hostis à revolução, o que seria moral e estrategicamente inadmissível, novas classes surgiriam imediatamente e, vendo que a revolução satisfaria as necessidades de todos os indivíduos, prefeririam não fazer nada a trabalhar. É claro que não se pode ignorar este duplo perigo, pois ele venceria rapidamente a resistência da revolução, se não fosse contraposto por medidas efetivas. A melhor medida seria fazer com que as forças das classes não trabalhadoras contrarrevolucionárias fossem aplicadas em um trabalho útil. Sobre uma ou outra esfera, em tal ou qual medida, estas classes deveriam ocupar-se de um trabalho útil, necessário à sociedade; e é precisamente o direito de ter sua parte nos produtos da sociedade que os obrigará a isso, pois não existem direitos sem deveres. É precisamente o que afirma nosso belo princípio anarquista. Ele propõe, notadamente, dar a cada um segundo suas necessidades sob a condição de que sirva a sociedade segundo suas forças e suas possibilidades, e não de que não a sirva absolutamente.
Exceção será feita às crianças, aos idosos, aos enfermos e aos inválidos. Com justiça, a sociedade dispensará todas estas categorias do dever de trabalhar, sem privá-las do direito à satisfação de todas as suas necessidades.
O sentimento moral dos trabalhadores condena profundamente o princípio de receber da sociedade segundo as necessidades e dar-lhe segundo a vontade, ou, inclusive, não lhe dar absolutamente nada. Os trabalhadores sofreram por muito tempo com a aplicação deste princípio absurdo, e esta é a razão pela qual adotam, em relação a ele, uma atitude intransigente. Nosso sentimento de justiça e também a lógica o condenam.
A situação mudará completamente no momento em que a sociedade livre dos trabalhadores estiver fortalecida e quando não houver mais classes sabotando a nova produção por razões contrarrevolucionárias, mas apenas alguns preguiçosos. Neste momento, a sociedade deverá realizar completamente o princípio anarquista “De cada um segundo suas possibilidades, a cada um segundo suas necessidades”, pois somente se ele for tomado como base, a sociedade terá assegurada a possibilidade de respirar a plena liberdade e a verdadeira igualdade.
Todavia, mesmo nessa época, a regra geral será que todas pessoas válidas, que gozem de direitos sobre os bens materiais e morais da sociedade, tenham certas obrigações em sua produção.
Bakunin, analisando esse problema, escreveu, durante o pleno desenvolvimento de seu pensamento e de sua atividade anarquista (em 1871, segundo informação do companheiro Nettlau):
Cada um deverá trabalhar para comer. Todo homem que não quiser trabalhar será livre para morrer de fome, a menos que encontre uma associação ou comuna qualquer que consinta em alimentá-lo por piedade. Mas, então, será provavelmente considerado justo não lhe reconhecer nenhum direito político, visto que, sendo capaz de trabalhar, preferirá sua vergonhosa situação e viverá às custas do trabalho alheio. Pois não haverá outra base para os direitos sociais e políticos senão o trabalho realizado por cada um.
Grupo de Anarquistas Russos no Estrangeiro
2 de novembro de 1926
Notas:
[1] Maria Isidin ou Maria Korn (Maria Isidorovna Goldsmith, 1873-1933). (N. E.)
Tradução: Plínio A. Coêlho. Realizada a partir do texto em francês, que foi traduzido do original em russo por Alexandre Skirda.
Revisão, preparação e coordenação do projeto: Felipe Corrêa. A terminologia deste texto foi ajustada, com base na nova tradução da Plataforma. Para os ajustes, foram também consultadas as traduções de Paul Sharkley (inglês), José Antonio Gutierrez Danton (castelhano) e Nestor McNab (italiano).