A Prática Revolucionária da Makhnovitchina (1918-1921) – Felipe Corrêa

A PRÁTICA REVOLUCIONÁRIA DA MAKHNOVITCHINA (1918-1921)

Felipe Corrêa

 

 

“Digamos algumas palavras sobre o anarquismo: não é uma mística,

nem uma utopia, nem tagarelices sobre a harmonia, nem um grito de desespero.

Não, o anarquismo vale antes de mais nada por sua dedicação à humanidade oprimida. […]

Como o anarquismo e a makhnovitchina estão estreitamente ligados entre si,

é natural que a um e a outro se apresentem caminhos semelhantes,

conduzindo rumo à liberdade, à igualdade e à fraternidade.”

Panfleto makhnovista

 

INTRODUÇÃO

Este texto busca identificar e, em alguma medida, analisar, na história da Revolução Ucraniana, a prática revolucionária do movimento makhnovista, no período entre 1918 e 1921.

Decorrendo dos desdobramentos da Revolução Russa de 1917, este processo ucraniano, conforme apontam Michael Schmidt e Lucien van der Walt (2009, p. 254), constituiu uma revolução distinta, não somente por sua envergadura, mas principalmente por suas particularidades.

A chamada makhnovitchina – um movimento social amplo, composto majoritariamente por camponeses pobres, cujo nome remete a uma de suas principais lideranças, o anarquista Nestor Makhno – constituiu um dos principais atores na revolução.

Tomando por base o já clássico estudo da Revolução Ucraniana, História do Movimento Makhnovista, de Piotr Arshinov – um militante makhnovista, que participou dos episódios revolucionários e ficou incumbido de escrever a história do movimento, concluída em 1921 –, discutirei mais pormenorizadamente a prática revolucionária da makhnovitchina, no contexto em questão.

A REVOLUÇÃO UCRANIANA E OS MAKHNOVISTAS

Os impactos da Revolução Russa atingiram a Ucrânia entre os fins de 1917 e início de 1918, quando a burguesia nacional, partidária de Petliura, detinha o poder. Naquela época, a industrialização do país era incipiente e a maioria da população composta por camponeses. Em função da fraqueza do Partido Comunista na região, os conselhos (sovietes) assumiam um caráter distinto do processo russo: organizaram operários e camponeses sem impor-lhes subserviência. A permanência das tradições ucranianas de lutas por independência, em particular a Volnitza – lutas por independência dos séculos XIV a XIV, quando o território ucraniano serviu de refúgio para muitos daqueles que não quiseram submeter-se à servidão russa e que se envolveram em mobilizações contra as tentativas de dominação imperialista perpetradas pela Rússia (Cf. Arshinov, 1976, pp. 45-46) –, estimulavam este fortalecimento dos movimentos de massas revolucionários e também de sua articulação pela base, algo que havia surgido já no contexto da Revolução de Fevereiro.

Esse contexto alterou-se dramaticamente quando, em março de 1918, por meio do Tratado de Brest-Litovsky, o território ucraniano foi cedido, junto com outros, ao governo imperial alemão. A presença imperialista dos austro-alemães caracterizou-se pela intervenção não somente militar, mas também política e mesmo econômica, com a pilhagem de víveres da população, e pelo reestabelecimento do poder dos nobres e agrários, instalando o governo do hetman Skoropadsky. Este poder, trágico para a revolução, acabou com as conquistas revolucionárias dos operários e camponeses e promoveu uma “volta ao passado”.

Nesta conjuntura emerge, em meados de 1918, o Movimento Revolucionário de Camponeses da Ucrânia, rebelando-se, por meio de insurreições, contra os agrários e os austro-alemães. Promovendo a expropriação de terras e de bens dos proprietários e combatendo os invasores imperialistas, este movimento, reprimido implacavelmente pelo hetman e as autoridades alemãs, recorreu à auto-organização e à guerrilha para os combates e colocou os trabalhadores na direção de suas próprias lutas. Mesmo com a repressão, o movimento crescia em todo o território ucraniano, ainda que sem uma unidade.

Coube aos revolucionários do sul, em particular da região de Guliaipolé, guiados pelo camponês anarquista Nestor Makhno, investir numa unificação; o papel de Makhno foi tão relevante nessas lutas que se tornou referência para milhões de oprimidos ucranianos. No entanto, sua influência terminou atingindo somente o sul da Ucrânia; nas regiões oeste e noroeste do país influíram, principalmente, democratas e nacionalistas, muitos partidários de Petliura. Esta unificação do movimento insurrecional ao sul do país, levada a cabo ainda durante o verão de 1918, constituiu o que ficaria conhecido como “makhnovitchina” ou “movimento makhnovista”.

A makhnovitchina foi uma das forças sociais relevantes no contexto revolucionário e combateu, até 1921, em diferentes frentes: os imperialistas austro-alemães do hetman, os brancos de Denikin, os nacionalistas burgueses de Petliura, até os bolcheviques de Trotsky. Constituiu um movimento de camponeses pobres e operários que se autodirigiram tanto na defesa dos ataques de inimigos quanto no avanço para a conquista e libertação de regiões amplas. Articuladas no Exército Insurrecional Revolucionário da Ucrânia (EIRU) [Революційна Повстанська Армія України, em ucraniano], as forças makhnovistas encabeçaram um processo revolucionário de larga escala com resultados notáveis.

Conforme o EIRU cresceu e expandiu seu controle sobre o território, ele criou espaço para o florescimento de uma revolução anarquista em grande parte do sul da Ucrânia. Com bases entre os camponeses pobres, mas com um apoio substancial urbano, a Revolução Ucraniana envolveu expropriações de terra em larga escala, a formação de coletivos agrários e o estabelecimento de autogestão industrial, todos coordenados por federações e congressos de sovietes. (Schmidt e van der Walt, 2009, p. 255)

O exército makhnovista destacou-se por suas dimensões e por seu inovador modus operandi. Segundo Schmidt (2013, p. 61), nos fins de 1919, o EIRU contava com 110 mil membros, divididos em quatro corpos: 83 mil na infantaria, 20 mil na cavalaria, além de grupos de assalto, de artilharia, de reconhecimento, médicos e outros destacamentos; possuía carros e trens blindados. Suas fortalezas encontravam-se em Alexandrovsk, Nikopol, Yekaterinoslav e Crimeia. Mais do que suas táticas de batalha, focadas nos ataques rápidos de surpresa e na alta capacidade de deslocamento dos destacamentos, a novidade do EIRU é que ele era constituído por membros voluntários – incluindo não somente anarquistas, mas também socialistas revolucionários, maximalistas, dissidentes bolcheviques e outros –, que elegiam seus oficiais e tinham um papel ativo no estabelecimento de suas regras de conduta e disciplina, além de estarem vinculados a extensos organismos populares, conferindo-lhes amplo respaldo da população.

Por mais que este vigoroso movimento social tenha se destacado por seus aspectos militares, muito em função do contexto em que esteve inserido, ele teve outros aspectos consideráveis. Dentre eles, destacam-se os esforços de socialização de territórios e o fortalecimento de instâncias organizativas para a participação popular. Os Congressos de Camponeses, Operários e Insurgentes, por exemplo, estabeleceram as linhas sócio-políticas do movimento, incluindo as do EIRU. Além disso, a makhnovitchina investiu em iniciativas culturais, educativas e artísticas, que visavam não apenas instruir e entreter, mas engajar e preparar a população para as práticas revolucionárias, por meio da difusão de um senso de coletividade entre camponeses e operários permeado de novos valores e de uma ética particular.

Esse movimento, compostos pelas “camadas mais profundas dos trabalhadores”, tinha por objetivo “destruir o sistema econômico de escravidão e criar um sistema novo, baseado na comunidade dos meios e dos instrumentos de trabalho e no princípio da exploração da terra pelos próprios trabalhadores”. (p. 46) Tratava-se de um tipo de movimento socialista e revolucionário, que reivindicada a socialização não somente da propriedade privada, mas também do poder político. Em seu projeto político mais amplo, a propriedade privada e o Estado deveriam ser substituídos por conselhos autogestionários de trabalhadores. Os meios para tanto deveriam se apoiar na participação e na luta generalizada e voluntária de camponeses e operários, na independência em relação aos partidos políticos e na construção, pela base, das próprias mobilizações desses trabalhadores. Esses princípios deveriam pautar a conformação, durante esse processo, dos germes da nova sociedade que se desejava construir.

Num balanço da experiência makhnovista, que se poderia ser considerada um vetor social de massas do anarquismo, Schmidt enfatiza:

Na Ucrânia, a estratégia makhnovista de combinar a ousada flexibilidade militar com uma práxis libertária de democracia pluralista interna, submetendo o movimento às plenárias civis e libertando (por um tempo, pelo menos) um território com praticamente 7 milhões de habitantes, faz da Revolução Ucrânia o mais holístico dos experimentos sociais anarquistas, apesar das circunstâncias calamitosas e em constante mudança da guerra, que a impediram de ter a continuidade da Revolução Espanhola, ocorrida posteriormente. (Schmidt, 2013, p. 63)

O fim deste movimento, em 1921, relaciona-se, conforme colocado, às consequências da guerra em geral, particularmente ao crescimento das forças bolcheviques na região, que terminaram implicando a difamação e a supressão física do EIRU e das experiências autogestionárias constituídas com as lutas populares makhnovistas. Entre 1918 e 1921, houve alianças entre makhnovistas e bolcheviques, como em dois casos quando, praticamente derrotados pelos brancos, os bolcheviques pediram ajuda ao movimento makhnovista e, graças a isso, e somente a isso, conseguiram garantir a vitória. Entretanto, conforme aponta Arshinov (1976), essas alianças não impediram que o Exército Vermelho e o próprio Partido Comunista atentassem, pela difamação na imprensa e pela força das armas, algumas vezes pelas costas e traindo acordos, contra os makhnovistas. Ataques estes que se inserem num contexto mais amplo, em que os bolcheviques, visando estabelecer o poder de seu partido sobre os sovietes e outras forças progressistas da revolução, eliminaram todas as iniciativas populares, muitas das quais de esquerda, socialistas, revolucionárias.

A PRÁTICA REVOLUCIONÁRIA DA MAKHNOVITCHINA

Busca-se, a seguir, identificar quais foram as ações protagonizadas pelo movimento makhnovista da Ucrânia, no período de 1918 a 1921, realizando, inicialmente, um esforço descritivo e, em seguida, um breve esforço analítico relativos à utilização deste ferramental de luta.

Evidentemente, a prática revolucionária dos makhnovistas relaciona-se diretamente às tradições precedentes de lutas dos povos oprimidos ucranianos. Possui, por isso, um vínculo com mobilizações camponesas e anti-imperialistas que reuniram parte considerável dos ucranianos contra proprietários de terra e o império russo. Entretanto, esta prática também apresenta algumas inovações.

As ações que compuseram a prática revolucionária da makhnovitchina podem ser divididas em quatro eixos: Guerra revolucionária, Socialização autogestionária, Instâncias organizativas e Cultura libertária, os quais serão discutidos em seguida.

Guerra revolucionária

No que diz respeito às ações de guerra, os makhnovistas envolveram-se em enfrentamentos encarniçados por terra, colocando sua infantaria, sua cavalaria e outros de seus destacamentos em confronto direto com outras forças. O EIRU combateu violentamente, em diversos episódios da guerra, forças dos austro-alemães, dos brancos, dos nacionalistas e dos bolcheviques. A guerra por ele empreendida teve de, concomitantemente, defender a Ucrânia da ocupação austro-alemã e combater não somente as forças contrarrevolucionárias, mas também aquelas pretensamente revolucionárias, cujos programas e práticas apontavam para o estabelecimento de novas formas de dominação dos camponeses e dos operários. Ela visava conquistar a socialização em todos os níveis; nos termos do próprio movimento, tal era a vitória buscada: “venceremos para tomar os nossos destinos em nossas próprias mãos e regular nossa vida pelas nossas próprias vontades e com nossa verdade.” (Arshinov, 1976, p. 62)

Em termos da constituição do exército makhnovista, pode-se destacar:

Consistia esse exército em vários regimentos de infantaria e cavalaria muito bem organizados. A infantaria era no exército makhnovista um fenômeno excepcional e original. Deslocava-se como a cavalaria, servindo-se de cavalos, não a cavalo, mas em ligeiras viaturas de molas chamadas na Ucrânia meridional de tatchanki. Esta infantaria, formando uma fileira ou duas, marchava habitualmente a trote rápido juntamente com a cavalaria, fazendo 60 a 70 quilômetros por dia e mesmo, se era necessário, 90 a 100. (p. 102)

Esta rapidez, demonstrada na alta capacidade de deslocamento do EIRU, constituiu uma de suas qualidades e foi responsável por várias de suas vitórias. “Excelentes cavaleiros desde a infância, tendo, no caminho, cavalos para a muda à sua vontade, Makhno e seus partidários eram inacessíveis, fazendo em 24 horas marchas impossíveis para as tropas de cavalaria regular”. (p. 60) Em geral, a rapidez do exército permitiu que ele realizasse investidas em localidades distintas, inesperadas pelos seus inimigos. Surpreendidos pelos ataques, constantemente sequer conseguiam defender-se.

Nos casos em que essas investidas eram feitas contra outras tropas, por meio de um enfrentamento aberto entre exércitos, a orientação era, em geral, a mesma utilizada no combate contra os invasores imperialistas: “no que diz respeito às tropas austro-alemãs e magiares, os partidários obedeciam à seguinte regra: matar os oficiais e dar a liberdade aos soldados feito prisioneiros”. Considerava-se que a base dos exércitos inimigos poderia ser convencida a juntar-se ao exército revolucionário ou mesmo a retornar às suas localidades e trabalharem pela causa da revolução. “Propunha-se a eles regressarem às suas terras e lá contarem o que faziam os camponeses ucranianos e trabalharem para a revolução social”. Suas condições eram facilitadas pelos makhnovistas, que às vezes os davam dinheiro, mas, especialmente, investiam na tentativa de convencer os soldados por meio da propaganda revolucionária: “forneciam-lhes literatura libertária”. Entretanto, os soldados que haviam reconhecidamente praticado atos de violência contra trabalhadores eram imediatamente executados. Usufruía-se, também, de infiltrações nas fileiras inimigas com o objetivo de eliminá-las. (p. 61)

Em outros casos, os makhnovistas investiam em guerras de emboscada, surpreendendo os inimigos e não lhes dando possibilidades de reagir. No início do processo, em 1918, “os camponeses […] organizaram-se em franco-atiradores e recorreram à guerra de emboscada”. Surgindo concomitantemente em localidades diversas, agiam “contra os agrários, os seus guardas e os representantes do Poder”. Esses destacamentos, “compostos de 20, 50, 100 cavaleiros bem armados” atacavam propriedades, Guarda Nacional, inesperadamente, “massacravam todos os inimigos dos camponeses e desapareciam tão rapidamente como tinham vindo”. (p. 51) O exército buscava garantir que, nestes casos, os camponeses não fossem perseguidos, ameaçando permanentemente de morte seus inimigos de classe.

Houve, como em geral ocorre em conflitos desse tipo, alianças que foram realizadas pelos makhnovistas, sendo as mais comuns com os bolcheviques.

No início desconhecido pelos comunistas, o movimento makhnovista tornou-se notável por seu combate aos imperialistas, nacionalistas e brancos, gerando certa expectativa de que pudesse ser incorporado ao Exército Vermelho. O convite foi feito em março de 1919 e os makhnovistas, crendo que “era necessário concentrar no momento todas as forças contra a reação monárquica e não se ocupar de divergências ideológicas com os bolcheviques, senão depois da liquidação da contrarrevolução”, aceitaram a proposta de aliança. (p. 106) Foi assim que se operou, naquela circunstância, a junção ao Exército Vermelho.

Entretanto, os makhnovistas colocaram algumas condições. Além de exigirem que seu exército só ficasse “subordinado ao comando vermelho superior no que respeita às operações militares propriamente ditas”, e que ele conservasse “o seu nome de Exército Revolucionário Insurrecional e suas bandeiras negras”, acertaram que “o exército insurrecional mantém a sua antiga organização interior”. (p. 106) Visavam, com isso, conservar aspectos organizativos caros ao seu exército, que divergiam consideravelmente dos bolcheviques. Três princípios caracterizam esta organização: o voluntariado, o princípio eleitoral e a autodisciplina:

O voluntariado significava que o exército só se comporia de combatentes revolucionários que para ele entrassem livremente. O princípio eleitoral consistia em os comandantes de todas as frações do Exército, os membros do Estado maior e do Conselho, bem como todas as pessoas ocupando no Exército postos importantes em geral, deveriam ser eleitas ou aceites pelos insurgidos das frações respectivas ou por todo o Exército. A autodisciplina significava que todas as regras da disciplina do Exército eram elaboradas por comissões dos insurgidos, depois validadas pelas reuniões gerais das facções do Exército e eram rigorosamente observadas sob a responsabilidade de cada insurgido e de cada comandante. (pp. 106-107)

Tais linhas organizativas buscavam dar à organização militar dos revolucionários ucranianos linhas distintas do militarismo stricto sensu, que, segundo acreditavam, não colocava em xeque aspectos centrais da sociedade que buscavam combater. Esta incorporação de elementos igualitários e libertários no exército faziam parte, em alguma medida, de uma prática autogestionária e federalista, que deveria não somente pautar as lutas, mas nortear a própria construção da nova sociedade. Promoviam-se, por meio dessas práticas, uma determinada cultura política e um conjunto de valores pertinentes ao projeto político da makhnovitchina.

Socialização autogestionária

Outro eixo de ação do movimento makhnovista constituiu-se com as conquistas revolucionárias, que fizeram avançar seu programa socialista libertário, incluindo expropriações, tomadas de terras e constituição de comunidades libertadas. Parte considerável das ações de guerra revolucionária envolvia disputa por territórios. No que tange aos procedimentos de guerra anteriormente relatados – que abarcavam a apropriação de terras e de bens dos agrários, os conflitos encarniçados entre trabalhadores e proprietários, as ameaças e execuções dos inimigos de classe –, a vitória por parte dos makhnovistas implicou, em vários casos, implantações de uma socialização de base autogestionária em diferentes regiões.

Logo que entravam em qualquer cidade declaravam que não representavam nenhuma autoridade, que sua força armada não constrangia ninguém a qualquer obrigação, fosse de que natureza fosse, que se limitavam a proteger a liberdade dos trabalhadores. A liberdade dos camponeses e dos operários, diziam os makhnovistas, pertence a eles próprios e não pode sofrer nenhuma restrição. É a eles mesmos que compete agir, construir, organizar-se como entenderem em todos os domínios da sua vida. Quanto aos makhnovistas, só podem ajudá-los com um ou outro conselho ou opinião e pôr à sua disposição as forças intelectuais e militares necessárias, mas não querem em nenhum caso prescrever seja o que for. (p.163)

Quando a makhnovitchina conseguia se impor nos conflitos com seus inimigos, ela libertava territórios, envolvendo a socialização generalizada, garantida pela força das armas. Ainda assim, ela não impunha um programa aos camponeses e operários, mas estimulava que se organizassem, que tomassem suas próprias decisões, e que protagonizassem sua própria emancipação. Os makhnovistas terminavam por fortalecer este processo de massas, como um tipo de motor que robustece o barco da revolução social popular. Sem submeter os trabalhadores à sua direção, sem obrigar-lhes e coagir-lhes a adotar quaisquer medidas.

Em alguns casos, “os makhnovistas nomeavam comandantes em algumas cidades tomadas”, com as funções de “servir de traço de união entre as tropas que tinham tomado a dita cidade e a população”. Tais “comandantes não dispunham de nenhuma autoridade quer militar quer civil e não deviam intrometer-se de nenhuma maneira na vida social da população”. (p. 163) Estimulavam-se, dessa maneira, princípios como a independência de classe, sem subordinação de camponeses e operários a qualquer autoridade externa, fossem elas estatais ou partidárias. Os trabalhadores oprimidos deveriam construir, eles mesmos, sua nova sociedade.

No momento em que um território era libertado, os makhnovistas “dirigiam-se desde logo à massa laboriosa da população para convidar a tomar parte numa conferência geral dos trabalhadores da cidade”. Era fundamental, para eles, que os trabalhadores fossem envolvidos nesse processo. Quando esta conferência ocorria, realizava-se um relatório “sobre a situação do distrito do ponto de vista militar” e, em seguida, articulava-se uma “proposta de organizar a vida da cidade e o funcionamento das oficinas e das fábricas pelas forças e os cuidados dos próprios operários e das suas organizações”. (p. 164) Estimulava-se, por meio de discursos às massas – muitas vezes realizados pelo próprio Makhno, “não só guia militar notável, mas também bom agitador” –, a elaboração de “relatórios sobre a obra necessária no momento, sobre a vida em comunidade livre e independente dos camponeses trabalhadores, como objetivo da insurreição”. (p. 62)

Os trabalhadores, em geral, aclamavam “entusiasticamente esta ideia”; entretanto, ela não era implantada sem imensas dificuldades. Coordenar concretamente os organismos e procedimentos nesse sentido foi sempre complicado, principalmente pela falta de referenciais e experiências organizativas desse tipo, problema que se tentou superar com múltiplos empreendimentos experimentais, como no caso dos ferroviários, em 1919, que passaram a autogerir os trens na região de Alexandrovsk. (p. 164)

Tal procedimento de socialização autogestionária norteou diversas libertações de territórios: “depois de Alexandrovsk, foi a vez de Pologuy, de Guliaipolé, de Berdiansk, de Melitopola”. (p. 160) No caso específico de Guliaipolé, Makhno, em conflitos com forças muito mais numerosas, entre entradas e saídas da região, finalmente, “tornou-se o novo senhor da aldeia, expulsando os austríacos com o auxílio dos habitantes” (p. 66); passou, em seguida, o controle da localidade aos seus moradores. Não foi inconstante, na defesa desta aldeia, protagonizada pelos trabalhadores, a utilização de utensílios em alguma medida peculiares. “Os camponeses de Guliaipolé formaram um regimento para tratar de salvar sua aldeia” que estava em risco; para tanto, “tiveram de se armar […] de utensílios primitivos: machados, chuços, foices, velhas carabinas, espingardas de caças etc.”. (p. 138) Durante um período relativamente curto, os habitantes de Guliaipolé estabeleceram um sistema de autogestão, sem propriedade privada, sem Estado e pautado em novas relações sociais:

Quanto ao povo trabalhador, é precisamente a partir do dia que se torna realmente e completamente livre que começa a viver e a desenvolver-se de uma maneira intensa. Os camponeses de Guliaipolé provaram-no bem. Durante mais de seis meses – desde novembro de 1918 até junho de 1919 – viveram sem nenhum poder político [Estado] e, não só não perderam os laços sociais entre si como até criaram uma nova forma de relações sociais: a comuna de trabalho livre e os sovietes (conselhos) livres dos trabalhadores. (pp. 94-95)

O estabelecimento destas novas relações sociais e mesmo destas instâncias organizativas constituía, para os makhnovistas, a maneira concreta, enraizada profundamente nos próprios trabalhadores, de se estabelecer o socialismo libertário. Era assim que acreditavam estar criando o novo sujeito, capaz de autogerir toda uma nova sociedade que estava em construção.

As iniciativas do movimento no campo da socialização autogestionária envolveram, ainda, a expropriação e organização pela base de outros setores fundamentais da economia, em especial dos transportes, assim como a expropriação de víveres, com vistas ao abastecimento das regiões libertadas. “Os partidários makhnovistas ocuparam várias estações de caminho de ferro importantes” (p. 102) que, juntamente com as iniciativas dos ferroviários, constituíram passos relevantes para que os transportes da região fossem autogeridos. Num caso específico, como resultado de um combate contra as tropas de Denikin, os makhnovistas “tomaram-lhes perto de 100 vagões de trigo” e, por iniciativa de Makhno e do EIRU, numa decisão aprovada pelas massas insurgidas, esses víveres “foram levados para Petrogrado e Moscou, acompanhados de uma delegação makhnovistas que foi recebida calorosamente pelo soviete de Moscou”. (p. 104)

Para a makhnovitchina, estas iniciativas faziam avançar, coerentemente, desde uma perspectiva estratégica – em que os objetivos finalistas norteiam as estratégias, e estas as táticas –,uma socialização generalizada na Ucrânia, cuja propriedade e o poder estariam sob controle direto dos trabalhadores em autogestão.

Instâncias organizativas

As ações do movimento makhnovista, como se pode notar, não podem ser consideradas utópicas ou mesmo idealistas, no sentido de pregarem um mundo novo sem respaldo de uma prática concreta no sentido de atingi-lo. Não bastava, para ele, pregar a necessidade da supressão da propriedade e do Estado; era necessário criar os meios para que isso fosse viabilizado. Se por um lado a guerra revolucionária e a socialização autogestionária estabeleciam caminhos para tanto, as instâncias organizativas do movimento – tanto internas (que diziam respeito ao funcionamento orgânico da makhnovitchina), quanto externas (que se relacionavam ao andamento dos territórios libertados) – constituíam iniciativas concretas por meio das quais os trabalhadores passariam a deliberar sobre questões econômicas, políticas e culturais de sua nova sociedade. A criação dessas instâncias organizativas, também autogestionárias, no seio do processo revolucionário, constitui um traço notável do esforço makhnovista de se criar, dentro da velha sociedade, novos instrumentos capazes de aumentar a força de camponeses e operários e acostumá-los à autogestão.

Foi apontado que, em sua organização interna, o EIRU possuía traços libertários, e que sua linha sócio-política era definida pelos organismos de base compostos por amplas massas de trabalhadores. Entre junho e julho de 1920, os makhnovistas investiram na criação de um soviete que dirigiria todas as atividades do movimento: o Conselho dos Insurgidos Revolucionários da Ucrânia (makhnovistas), “formado de sete membros elementos e ratificados pela massa dos insurgidos”. Submetidas a este conselho estavam as três seções principais do exército: “a dos assuntos e operações militares, a da organização e inspeção e, enfim, a da instrução e cultura”. (p. 188)

O estímulo às organizações de base, entretanto, não era fundamental somente para o exército, mas para o processo revolucionário como um todo, visto que, como questão de princípio, o objetivo da makhnovitchina não era estabelecer-se como novo estrato dominante, mas fortalecer um processo em que os próprios trabalhadores pudessem se libertar e encabeçar, por si mesmos, a reconstrução social. Para isso, ela fomentou a criação de comunas, congressos e sovietes e a participação dos trabalhadores nestas instâncias organizativas.

As comunas livres floresceram em diferentes localidades: “em muitos pontos da região de Guliaipolé, comunas camponesas surgiram, chamadas comunas de trabalho ou comunas livres”. Eram, em grande medida, espontâneas, articulando “uma pequena parte da população: principalmente os que não possuíam bens rurais solidamente estabelecidos e cultivados”. Mais do que um trabalho organizativo dos makhnovistas – que, segundo Arshinov, não influenciaram senão por terem “propagado na região a ideia das comunas livres” –, estas experiências evidenciavam a necessidade do campesinato pobre de organizar “sua vida econômica sobre a base comunal” e que havia uma cultura nele enraizada, em alguma medida autogestionária. (p. 96)

“O princípio da fraternidade e da igualdade era fundamentalmente mantido nas comunas” e “todos, homens e mulheres, deviam trabalhar na medida de suas forças”; além disso, “as funções organizadoras eram confiadas a um ou dois camaradas que, depois de as haverem cumprido, retomavam o trabalho habitual lado a lado dos outros membros da comuna”. (p. 97) Os princípios fraternais e igualitários, o trabalho de acordo com as possibilidades e a delegação rotativa de funções evidenciam traços libertários que estavam presentes no movimento durante a revolução. Entretanto, essas experiências das comunas livres eram, conforme mencionado, restritas, e era necessário ampliá-las e chegar a um nível mais extensivo de organização. Foi no sentido de fortalecer este processo organizativo que os makhnovistas passaram a articular os congressos de camponeses e operários.

Era indispensável atingir uma organização unida não apenas nos limites de tal ou tal burgo, mas no de distritos ou governos inteiros que faziam parte da região libertada. Era preciso criar os órgãos correspondentes; os camponeses não deixaram de fazê-lo. Esses órgãos eram os congressos regionais dos camponeses, operários e partidários da insurreição. Durante o período em que a região permaneceu livre, houve três destes congressos. Neles, os camponeses conseguiram ligar-se estreitamente, orientar-se e determinar os trabalhos econômicos e políticos que deviam fazer. (p. 97)

Por meio destes congressos, os insurgentes tentavam fugir do isolamento e articular as áreas libertadas, assim como sua economia e política socializantes. Era fundamental não somente articular a defesa militar dos territórios, mas também vincular as estruturas econômicas e políticas das diferentes regiões, potencializando os resultados coletivos e o próprio espalhamento da revolução social.

O primeiro destes congressos ocorreu em janeiro de 1919 e o segundo um mês depois; o terceiro, ocorrido em abril, teve uma participação considerável: “os delegados de 72 distritos representando uma massa de mais de dois milhões de homens reuniram-se no congresso”. (p. 109) O federalismo autogestionário praticado pelos trabalhadores – em que delegados eram escolhidos entre os organismos de base e a partir de suas deliberações para levar suas posições a serem articuladas com outras, mantendo, ao mesmo tempo, a articulação e a independência de cada região – constituía um princípio organizativo que norteou estes congressos. Outros congressos ocorreram durante 1919, já num contexto de maior complicação, e discutiram principalmente a problemática militar, mas também alguns aspectos organizativos, sempre com ampla presença, como nos casos do congresso de julho, com presença de 20 mil pessoas (p. 149), e do congresso de outubro, com 180 delegados camponeses e 20 ou 30 operários (p. 164).

Acompanhando deliberações destes congressos e visando aprofundar o processo revolucionário, criaram-se conselhos de variados tipos. Não somente militares – como no caso do Soviete Revolucionário Militar regional dos camponeses, operários e partidários, surgido depois do segundo congresso, no intuito de fortalecer o combate contra Petliura e Denikin, o qual contou com representantes de 32 distritos das regiões de Yekaterinoslav e Taurida –, mas também outros.

No que diz respeito aos órgãos da autodireção social, os camponeses e os operários eram partidários da ideia dos Sovietes de Trabalhos Livres. Contrariamente aos Sovietes políticos dos bolchevistas e dos outros socialistas, os Sovietes Livres dos camponeses e operários deviam ser os órgãos do seu self-government social e econômico. Cada Soviete era apenas o executor da vontade dos trabalhadores da localidade e das suas organizações. Os Sovietes locais estabeleciam entre si a ligação necessária formando assim organismos mais vastos econômicos e territoriais. (pp. 100-101)

Para os makhnovistas, estas estruturas autogestionárias, cujo espalhamento foi dificultado por adversidades militares, proporcionavam aos trabalhadores a condição de participarem de variadas instâncias deliberativas, exercitando este “autogoverno social e econômico”. Os conselhos, ao mesmo tempo, articulavam a luta dos revolucionários e preparavam-se para conformar a base da nova sociedade. Eram os órgãos por meio dos quais os trabalhadores substituiriam a propriedade privada e o Estado e colocariam camponeses e operários no controle de suas próprias vidas.

Cultura libertária

Mesmo com todas as dificuldades que uma guerra revolucionária implica, a makhnovitchina conseguiu levar a cabo ações para criar e fortalecer uma cultura libertária, capaz de reforçar as ações do movimento em outras esferas. Investiu, para tanto, em propaganda e agitação, imprensa, educação, teatro e artes.

Os makhnovistas executaram a redação e a distribuição de manifestos e apelos a camponeses, operários e soldados, que explicavam aos trabalhadores o que estava acontecendo e buscavam impulsioná-los à luta revolucionária. Num dos primeiros apelos redigidos por Makhno, pode-se ler:

Vencer ou morrer – eis o dilema que se ergue perante os camponeses e operários da Ucrânia no presente momento histórico. Mas morrermos todos nós não podemos, somos para isso muitos, demais. Nós somos a humanidade. Portanto venceremos. Mas nós não venceremos para repetir o exemplo dos anos passados, confiar a nossa sorte a novos senhores; nós venceremos para tomar os nossos destinos nas nossas mãos e regular a nossa vida pelas nossas próprias vontades e com a nossa verdade. (p. 62)

Tais comunicados, em formato de panfletos, eram constantemente distribuídos para circular as posições dos makhnovistas e complementavam, em alguma medida, sua imprensa. Seu principal jornal era O Caminho para a Liberdade, publicado diariamente (p. 168), ainda que seus escritos aparecessem também em outros periódicos, como no caso do jornal anarquista Nabat.

Com a guerra revolucionária na Ucrânia, a instrução escolar vinha tendo consequências funestas, visto que os professores não eram remunerados e os edifícios escolares estavam abandonados. Os makhnovistas, sustentando que essa situação só poderia ser resolvida pela vontade dos trabalhadores, decidiram investir em iniciativas educacionais.

Encarregando-se da instrução e da educação da juventude, os trabalhadores levantam e purificam a própria ideia de ensino. Nas mãos do povo a escola torna-se mais do que uma fonte de conhecimentos, torna-se, a igual título, um meio para a educação e o desenvolvimento do homem livre, tal como deve ser na sociedade livre e laboriosa. É por isso que, desde os primeiros passos do self government dos trabalhadores, a escola deve ser independente e separada não só da Igreja, mas também do Estado. (p. 199)

Influenciados pela educação libertária do anarquista espanhol Francisco Ferrer y Guardia, alguns makhnovistas investiram neste campo, criando escolas de trabalhadores e buscando fazer com que elas reforçassem suas lutas. Concretamente, em Guliaipolé, essas iniciativas contaram com algumas medidas bastante inovadoras: camponeses e operários realizavam a manutenção do pessoal pedagógico; uma comissão mista, de camponeses, operários e professores, satisfazia as necessidades econômicas e pedagógicas da vida escolar; a escola foi separada do Estado; os habitantes da região adotaram um plano de ensino livre sob inspiração de Ferrer; cursos especiais e políticos também foram levados a cabo. (p. 200)

Noções de História e Sociologia eram ensinadas para que os trabalhadores pudessem compreender mais adequadamente os objetivos e as estratégias revolucionárias da makhnovitchina. Entre os educadores, também se encontravam trabalhadores insurgentes, que haviam tido uma formação mais consistente, mesmo que ela fosse fruto de seu próprio autodidatismo. O programa desses cursos compreendia, entre outros assuntos: “a.) a Economia; b.) a História; c.) a Teoria e a Prática do Socialismo e do Anarquismo; d.) a História da Revolução Francesa (segundo Kropotkin); e.) a História da Insurreição Revolucionária no Seio da Revolução Russa etc.” (p. 201)

O movimento makhnovista também investiu no teatro e nas artes de maneira geral, ocupando-se em “organizar espetáculos para os insurgidos e os camponeses das aldeias vizinhas”. (p. 201) Em Guliaipolé, apesar da existência de um grande espaço para os teatros, artistas dramáticos profissionais eram sempre uma exceção na região; na sua falta eram geralmente amadores recrutados entre os camponeses, os operários e os intelectuais (sobretudo o pessoal de ensino e os alunos) da localidade que serviam de atores. Durante a guerra civil, embora Guliaipolé tivesse sofrido atrozmente, o interesse dos habitantes pela arte dramática não pareceu diminuir: pelo contrário, ia aumentando sempre. (p. 201)

Estas iniciativas no campo da arte popular, em que se associavam trabalhadores e intelectuais em prol de um teatro engajado, foram importantes não somente para que camponeses e operários pudessem, por si mesmos, colocar-se à frente de uma destacada produção cultural, mas para que promovessem mesmo uma subversão da lógica atores-espectadores, que caracterizava majoritariamente o campo até então. Parece que a mesma democratização de base que se preconizava para o campo político deveria ser aplicada, de maneira similar, à produção artística em geral e ao teatro em particular.

Dentre os temas encenados encontra-se a própria história da makhnovitchina, como no caso da peça “A Vida dos Makhnovistas”, escrita por um jovem camponês de Guliaipolé e na qual se abordam “os males do povo, a sua emoção intensa, o seu entusiasmo e o seu sublime heroísmo revolucionários”. (p. 202)

Tais iniciativas culturais libertárias contribuíram com outras ações do movimento e destacaram-se como parte notável de sua prática.

OS MAKHNOVISTAS E SUA PRÁTICA REVOLUCIONÁRIA

Realizando uma descrição da prática revolucionária da makhnovitchina dentro dos quatro eixos anteriormente colocados, tem-se:

1.) Guerra revolucionária: a.) Combates militares às forças inimigas com exércitos com regimentos de infantaria e cavalaria; b.) Guerras de emboscada, usufruindo da rapidez e da surpresa nos ataques; c.) Eliminação dos oficiais dos exércitos inimigos e libertação dos soldados, buscando convertê-los à causa revolucionária; d.) Alianças com adversários para combate de inimigos comuns e manutenção de alguns princípios: voluntariado, eleição de oficiais e autodisciplina.

2.) Socialização autogestionária: a.) Apropriação de terras e bens dos proprietários; b.) Ameaça de execução dos inimigos de classe; c.) Libertação de territórios pela força das armas e socialização generalizada; d.) Garantia da independência de classe e da autogestão dos trabalhadores; e.) Realização de conferências, relatórios, propostas organizativas e discursos às massas das regiões libertadas; f.) Defesa dessas regiões pelos seus moradores com armamento precário; g.) Expropriação e organização pela base de setores chave da economia; h.) Expropriação e socialização de víveres.

3.) Instâncias organizativas: a.) Subordinação da linha sócio-política do exército a organismos de massas; b.) Promoção da ideia das comunas livres e apoio a essas iniciativas; c.) Articulação das várias áreas libertadas em amplos congressos de camponeses, operários e partidários da insurreição; d.) Criação e fortalecimento de sovietes (conselhos) militares e sociais/econômicos.

4.) Cultura libertária: a.) Redação e distribuição de manifestos e apelos aos trabalhadores; b.) Edição e distribuição de um periódico de imprensa regular e publicação de material em outros jornais; c.) Criação de alternativas de educação para jovens e adultos, independente da Igreja e do Estado; d.) Elaboração de cursos de formação social e política dos trabalhadores; e.) Estímulo às artes em geral e ao teatro popular em particular.

Pode-se apontar, também, que, em todos os casos, houve tentativas de se respaldar esta prática revolucionária em noções éticas e valores preconizados pelos makhnovistas, com vistas a dar uma coerência estratégica a essas ações. A busca de conciliação entre liberdade individual e coletiva, igualdade em termos econômicos, políticos e sociais, solidariedade e apoio mútuo foram, de alguma maneira, incorporados em toda a prática da makhnovitchina.

Conhecer a prática revolucionária dos makhnovistas permite aprofundar o entendimento acerca do como eles se mobilizaram no contexto em questão. As ações envolvendo guerra revolucionária, socialização autogestionária, instâncias organizativas e cultura libertária revelam as maneiras pelas quais o movimento makhnovista manifestou-se e envolveu-se nos conflitos da Revolução Ucraniana.

As ações dos makhnovistas, se por um lado recorrem a uma prática bastante conhecida dos conflitos sociais em geral e em particular da guerra, por outro também inovaram não apenas em relação ao tipo de ação, mas fundamentalmente na maneira que estas ações foram levadas a cabo.

Cumpre assinalar, além disso, que a prática revolucionária do movimento não foi simplesmente escolhida pelos agentes dentro de um quadro quase infinito de possibilidades de ação. A situação de guerra por ele vivenciada obrigou-lhe, em certa medida, a adotar ações para a intervenção nesta circunstância. Mesmo que o conhecimento, a experiência e os valores dos camponeses e operários que compuseram a makhnovitchina tenham influenciado as escolhas do movimento em relação à sua prática, o contexto de guerra terminou, em grande medida, por compelir o movimento a realizar algumas escolhas. Ele foi obrigado a mediar sua liberdade de escolha e a necessidade que se colocava no momento; teve possibilidades, por meio da ação humana, de realizar escolhas, dentro de um contexto conjuntural, estrutural, que lhe colocava limites e exigências. A prática revolucionária analisada parece ter sido resultado de uma interação entre liberdade e necessidade de escolha e, por isso, entre a vontade e os limites contextuais.

A situação vivenciada pelos makhnovistas era de violência contínua, com níveis altos de repressão por parte de todas as forças inimigas e, ao final do processo, de antigas forças adversárias que terminaram por converter-se em inimigas. Tal circunstância não somente colocou as ações violentas, tais como os combates sanguinários de guerra, na ordem do dia, como as transformou em ações de rotina. Matar e morrer passou a fazer parte do dia-a-dia do movimento. A supressão de forças inimigas, portanto, colocou-se, ao mesmo tempo, como uma ação de rotina e uma necessidade pelas possibilidades de repressão das outras forças em jogo. As rotinas de duras explorações sofridas pelos proprietários e de um Estado que se concentrava quase que somente em reprimir os trabalhadores, parecem ter facilitado as ações anticapitalistas e antiestatistas que se desenvolveram. Seu dia-a-dia de lutas e resistência, que aprofundava certa consciência de classe nos trabalhadores, também aparenta ter sido importante na constituição de sua prática revolucionária. Ações em certo sentido bastante radicalizadas politicamente, como as socializações autogestionárias, parecem ter sido possíveis por um alto nível de conscientização dos camponeses e operários, em cujo processo a cultura libertária promovida também aparenta ter sido influente.

Além disso, a maneira de atuar dos makhnovistas parece ter sido determinantemente influenciada tanto por ações prévias – como a Volnitza, que fez parte de uma tradição ucraniana de luta por independência, ou mesmo por outras mobilizações e tradições do campesinato eslavo, como os levantes protagonizados por Stenka Razin (1630-1671) e Iemelian Pugatchev (1742-1775), ou mesmo o Mir (obschina) russo –, mas também pelas práticas de solidariedade e apoio mútuo que existiam na organização dos trabalhadores ucranianos. A difusão entre a população de práticas antiautoritárias, assim como seus padrões de direitos e justiça, aparentam ter pautado toda a prática makhnovista.

Os aspectos libertários do exército, com a seleção voluntária, eleição dos oficiais e autodisciplina, o tipo de socialismo estimulado e constituído na libertação de territórios e mesmo o modelo estabelecido para o funcionamento das organizações impulsionadas pela makhnovitchina parecem estar diretamente relacionados a determinados valores e mesmo uma ética particular dos membros do movimento, que não promoviam estes elementos por meio da cultura libertária, mas os incorporavam em todas as suas ações. O protagonismo dos trabalhadores, sua participação nos processos decisórios, a necessidade de acabar com as classes sociais, o fim da coerção protagonizada por organismos de minoria foram sempre estimulados e nortearam a prática do movimento.

Mesmo nos casos em que algumas ações eram quase que compelidas ao movimento, como a intervenção militar por meio de um exército, os makhnovistas tentaram conciliar esta necessidade com seus valores e sua ética. Por meio destes critérios, camponeses e operários puderam avaliar a sociedade ucraniana em que estavam inseridos e julgá-la, sustentando que uma nova sociedade, socialista e autogestionária, seria melhor e mais desejável do que aquela em que estavam inseridos, e por isso, sua luta revolucionária era legítima.

Verifica-se que as ações dos makhnovistas não divergiram, no que tange ao seu tipo, significativamente de outras forças. Ou seja, as ferramentas utilizadas – tais como a luta militar, a participação nos sovietes, o investimento na difusão cultural etc. – não diferem tanto de um ator para outro. As maiores diferenças, se comparamos a makhnovitchina com os bolcheviques, por exemplo, encontram-se na maneira, no como, uns e outros levaram a cabo estas ações. Se por um lado o EIRU constituía um exército voluntário e com participação das bases, o Exército Vermelho recrutava trabalhadores pela força das armas e das ameaças e mantinha e hierarquia de um exército formal. Se por um lado os makhnovistas estimulavam os sovietes visando o protagonismo das massas na revolução, os bolcheviques faziam deles correias de transmissão, exigindo subordinação ao partido, para eles, verdadeiro protagonista do processo revolucionário. Diversas outras diferenças poderiam ser enumeradas.

Em termos conclusivos, é possível dizer que a prática revolucionária da makhnovitchina, descrita anteriormente em quatro eixos, terminou por conciliar a liberdade de escolha e as necessidades contextuais do movimento, o qual recorreu, muitas vezes, às formas de ação mais conhecidas e às tradições de luta dos povos eslavos, mas que, ao mesmo tempo, também realizou certas inovações.

BIBLIOGRAFIA

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SCHMIDT, Michael; VAN DER WALT, Lucien. Black Flame: the revolutionary class politics of anarchism and syndicalism. Oakland: AK Press, 2009.

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