Wayne Price. “Religião e Revolução”

RELIGIÃO E REVOLUÇÃO

Wayne Price

 

Nota do autor: Embora eu pessoalmente não acredite em Deus, sou contra qualquer campanha antirreligiosa de “ateísmo militante“. São nossas opiniões políticas e práticas que importam para se estabelecer uma cooperação (em relação ao aborto, libertação LGBT, sexo, anti-guerras), não nossas visões sobre Deus.

“Meu país é o mundo. Minha religião é fazer o bem.”
– Tom Paine, revolucionário democrata e deísta dos EUA.

Tem havido um aumento no número de livros recentes criticando a religião. Às vezes chamados de “o novo ateísmo”, eles atraíram uma audiência em partes devido a uma repulsa contra a direita religiosa. Os fundamentalistas cristãos entraram na política como peões da extrema direita, apoiando as grandes empresas, a intervenção militar e a repressão de mulheres e pessoas LGBT. Isso provocou uma reação entre muitas pessoas. Enquanto isso, o atual inimigo do império norte-americano não são mais os “comunistas sem Deus”, como eram durante a Guerra Fria. Em vez disso, é uma ala fanática e autoritária do Islã, que usa Deus para justificar o assassinato em massa. Embora isso leve algumas pessoas a dizerem que isso é a prova que o Cristianismo ou o Judaísmo são superiores ao Islã, outros concluem que todo fanatismo religioso e autoritarismo são ruins (nota: por “religião” não quero dizer uma busca de significado ou uma identificação cultural, mas uma crença em um ser sobrenatural, um deus).

As tradições da extrema esquerda revolucionária são geralmente antirreligiosas, por boas razões. Através dos tempos, quase todas as religiões, pelo menos as estabelecidas, organizadas, aquelas com escritos sagrados, apoiaram os Estados e classes dominantes existentes (bem como a opressão das mulheres e a repressão sexual em geral). Mesmo aquelas que conduziram críticas ao sistema, aconselharam passividade e recuo. Naturalmente, nós, que nos comprometemos com a derrubada de todos os governantes, nos opomos a esses pontos de vista. O próprio conceito de “obedecer” a uma Autoridade Suprema é repugnante para muitas pessoas que amam a liberdade.

Por definição, as religiões se direcionam para outro mundo e para as transformações internas e espirituais dos indivíduos como forma de aliviar o sofrimento. Mas os revolucionários pensam que a solução para o sofrimento está nas atividades práticas neste mundo realizadas por massas de pessoas visando transformar o sistema social real (ou outros métodos materiais de acabar com o sofrimento, como a medicina científica para curar doenças). Esta é basicamente uma orientação diferente da abordagem religiosa.

Não é de surpreender que as escolas modernas de socialismo revolucionário, tanto o anarquismo quanto o marxismo, tenham sido fundadas por pessoas comprometidas com o ateísmo. Isso inclui tanto Mikhail Bakunin, quanto Karl Marx, e seus camaradas e co-pensadores. Bakunin odiava a religião e as igrejas, pedindo que fossem “abolidas”, junto com o Estado e o capitalismo. Marx desenvolveu uma concepção “materialista” do mundo que não tinha lugar para um deus. Ao contrário de Bakunin, Marx não defendeu um foco na religião enquanto se opunha ao capitalismo, considerando-a um assunto privado. Mais tarde, porém, Lenin e seus seguidores insistiram em lutar contra a religião, chamando isso de “ateísmo militante“.

 

RELIGIÃO REVOLUCIONÁRIA

No entanto, também existe uma tradição minoritária de rebeldia religiosa. Ela usou os slogans, “Nenhum mestre, mas Deus” e “Resistência à tirania é obediência a Deus“. Durante as revoluções democráticas burguesas (que lançaram as bases do capitalismo industrial), vários movimentos revolucionários se expressaram em termos religiosos. Alguns, como os anabatistas na Europa central ou os Levellers na Grã-Bretanha, prenunciaram o socialismo moderno.

Um ponto de vista materialista diria que a religião não é uma questão puramente de ignorância, mas uma resposta dos seres humanos à sua existência material, à sua atividade real. Isso incluiu a realidade de que havia grande sofrimento e injustiça na vida da maioria das pessoas. No entanto, durante a maior parte da existência humana, não foi objetivamente possível acabar com a sociedade de classes, dado o baixo nível de produção (até depois do início da Revolução Industrial). Todavia, existia o desejo de liberdade, cooperação e o fim do trabalho árduo. Esses valores humanos foram expressos da única maneira que poderiam ser, por meio da religião. Assim, junto com sua expressão de aceitação da opressão, a religião também expressou a esperança das pessoas pelo fim da opressão, por um mundo de paz e abundância, de liberdade e ajuda mútua. A religião preservou tais ideais para o tempo em que eles pudessem se tornar reais na prática – e ainda assim eles são frequentemente expressos em termos religiosos.

Quando Marx se referiu à religião como o “ópio” do povo, geralmente é mal interpretado como se ele estivesse dizendo que a religião vicia. Mas em sua época, o ópio era amplamente usado como analgésico, e ele estava dizendo que a religião servia para entorpecer a dor do sofrimento das pessoas sob o capitalismo – mas que agora era possível acabar com o sofrimento causado pelas condições sociais.

Na história do socialismo, houve uma minoria de socialistas religiosos, como os recentes católicos latino-americanos defensores da “teologia da libertação” ou alguns dos protestantes africanos-americanos defensores da “teologia da libertação negra”. Entre os anarquistas, o cristão mais famoso foi Leon Tolstói, embora Jacques Ellul, mais conhecido por sua crítica à tecnologia, também fosse um. Provavelmente a publicação anarquista mais difundida na América do Norte é a Catholic Worker, fundada por Dorothy Day. O teólogo judeu Martin Buber foi influenciado pelo comunismo anarquista. O hindu Gandhi não era um anarquista (ele fundou o Estado indiano!), mas era um descentralista e trocou cartas com Tolstói.

Além disso, nos tempos modernos, aprendemos que é possível para os ateus tomarem o poder, com sua própria marca de “materialismo“. E esses ateus, esses marxistas-leninistas, criaram tanta opressão, injustiça e sofrimento quanto todos os governos sancionados por Deus. O ateísmo, em si, não é a solução.

 

PORQUE EU NÃO ACREDITO EM DEUS

Embora eu rejeite o “ateísmo militante“, seja na concepção de Bakunin ou de Lênin, eu pessoalmente não acredito em Deus. Eu prefiro chamar isso de “humanismo”, já que “ateísmo” é apenas negativo (o que eu não acredito) ao invés de positivo (o que eu acredito), uma abordagem centrada no ser humano e naturalista sobre valores e modos de vida. Uma abordagem humanista me deixa aberto para trabalhar com pessoas religiosas. Mas primeiro, por que não acredito em Deus? Além do fato de que não precisamos mais de Deus para explicar o funcionamento do mundo, existe o fato de que o mundo em que vivemos simplesmente não se encaixa no conceito de Deus. Deus deve ser todo-poderoso, o criador de tudo. Ao mesmo tempo, Ele deve ser todo bom, a fonte de toda bondade e justiça: “Deus é amor”, dizem. Obviamente, não vivemos em um mundo governado por tal deus. Sem negar a existência do amor e da alegria, há muita miséria e injustiça neste mundo para que seja possivelmente administrado por um ser todo-bom e todo-poderoso. Não faz sentido.

Os teólogos chamam isso de “o problema do mal“. Eles explicam isso referindo-se ao “livre arbítrio“. Já que Deus dá às pessoas livre arbítrio, dizem, as pessoas devem ser capazes de escolher o mal em vez do bem. Isso pode explicar por que Deus “permitiu” que as milícias hutu em Ruanda cometessem genocídio contra os tutsis (embora pareça bastante cruel, digamos, para as crianças tutsis, cujo livre arbítrio não teve espaço para se desenvolver). Mas não explica o sofrimento causado por eventos naturais, como o tsunami no Oceano Índico ou epidemias. O livre arbítrio não tem nada a ver com isso. Admitindo-se que a ação humana pode piorar ou melhorar os desastres naturais, chegamos no ponto, pois apenas a ação humana (avanços na ciência, tecnologia e organização social) pode diminuir o sofrimento, não a confiança em Deus.

 

PORQUE EU NÃO ACREDITO NO “ATEÍSMO MILITANTE”

No entanto, isso não encerra totalmente a discussão. Independentemente de Deus, os humanos continuarão procurando e criando significados. Buscamos e nos comprometemos com valores e propósitos para nós mesmos e nossas comunidades. Quer estejam gravados no tecido do universo ou não (e eu acho que não), nós os desenvolvemos a partir da matéria do mundo e de nossos relacionamentos humanos. A ciência contribui para isso (a própria ciência é baseada nos valores da verdade e do conhecimento), mas a ciência como tal não fornece as respostas.

Os humanos pensam não apenas com o lado esquerdo do cérebro, lógico, analítico e linear, mas também com o lado direito do cérebro, holístico e simultâneo. Expressamos nossas visões do mundo e da comunidade em analogias, metáforas, imagens e cerimônias, com arte individual e em grupo, música e poesia. Em comparação com a ciência, essa forma de pensar não é certa nem errada, apenas diferente. Uma sociedade livre no futuro criará sua própria arte, suas próprias metáforas filosóficas e suas próprias cerimônias públicas, sejam elas semelhantes às religiões de hoje ou não.

Hoje, entretanto, vivemos sob o capitalismo, junto com o racismo, o sexismo, a repressão sexual e um modo de vida alienado. É claro que muitas pessoas buscam a religião para aliviar suas dores e dar sentido às suas vidas. Muitos sentem que precisam de uma figura paterna poderosa, mas amorosa para protegê-los, seja qual for a realidade. Se tivéssemos que esperar que a maioria das pessoas se tornasse ateia antes de fazer uma revolução, esperaríamos para sempre. De uma análise materialista, o capitalismo cria a religião popular, e a religião não morrerá até que o próprio capitalismo termine e uma nova realidade social seja criada.

Qual é realmente o problema da religião? Não é que os trabalhadores acreditem em um deus sobrenatural. É o que vem junto com isso. Pensando que conhecem os pensamentos do Todo-Poderoso, muitos crentes reivindicam o direito de impor seus pontos de vista a todos os outros. Conhecendo a Verdade Absoluta, ou assim pensam (sem a virtude da humildade), sentem que podem negar às mulheres o direito ao aborto, impedir que os jovens façam sexo, discriminar os gays (ou matá-los), provocar guerra e denunciar quem rejeita o capitalismo. É preciso dizer que isso não é pior (ou melhor) do que os ateus marxistas-leninistas que também pensam que conhecem a Verdade Absoluta, revelada por Karl Marx, tal como realizada pelo Processo Histórico – e que isso lhes permite estabelecer ditaduras e assassinar milhões de pessoas.

Enquanto houverem Estados, levantaremos a velha exigência democrático-burguesa de “separação entre Igreja e Estado”. A Igreja é livre para dizer o que quiser sobre o direito ao aborto e tentar persuadir seus seguidores. Mas não deve ser capaz de impor seus pontos de vista pelo poder da polícia e dos tribunais. A separação entre igreja e Estado também significa que não deve haver nenhum ateísmo imposto pelo governo como nos chamados Estados comunistas.

No final das contas, a única separação completa entre Igreja e Estado ocorrerá com a abolição do Estado. Em uma sociedade socialista-anarquista, as pessoas serão livres para se associarem umas às outras em sociedades religiosas, culturais ou filosóficas, se desejarem. Se as igrejas estiverem certas, então sob a liberdade haverá um florescimento da religião. Em minha opinião, entretanto, as religiões dos dias atuais provavelmente morrerão e novas cosmovisões não teístas se desenvolverão.

Agora mesmo, os humanistas anti-autoritários deveriam estar dispostos a trabalhar junto com pessoas que têm todos os tipos de pontos de vista sobre religião e filosofia. Não deve haver barreiras estabelecidas em nossas organizações revolucionárias. Mas deve haver discussões de questões políticas reais. Muitos anarquistas religiosos são pacifistas. Embora eu respeite seus pontos de vista e esteja disposto a trabalhar com eles, acho que isso é um erro político. Não creio que devamos pertencer à mesma organização revolucionária. Ao lidar com religiosos revolucionários, é importante conhecer seus pontos de vista sobre os direitos reprodutivos das mulheres e sobre a libertação gay. Essas questões podem ou não ser áreas importantes de desacordo. Em qualquer caso, são essas questões imediatas que mais precisam ser discutidas, não como pensamos que o universo está organizado em última análise.

 

2009

Fonte: https://theanarchistlibrary.org/library/wayne-price-religion-and-revolution
Traduzido por: Arthur Castro