Wayne Price. “Por que os Judeus?”

POR QUE OS JUDEUS?
Pensamentos de um judeu anarquista sobre a ascensão do antissemitismo

Uma piada judaica da Segunda Guerra Mundial: um oficial nazista deteve um velho judeu e exigiu que ele respondesse: “Quem começou a guerra⁈”. Sabendo o que era bom para ele, o velho respondeu: “Os judeus!”. O nazista acenou com a cabeça, mas o velho judeu continuou: “… e os ciclistas”. Intrigado, o oficial perguntou: “Por que os ciclistas?”. O judeu encolheu os ombros. “Por que os judeus?”

Recentemente, houve um aumento nas ações antissemitas nos EUA, bem como em outros países ocidentais. De 2017 a 2018, de acordo com a Liga Anti-Difamação, os ataques aos judeus mais do que dobraram para 39. Todos os “atos antissemitas” neste período totalizaram 1.879 (embora reconheça que os árabes também podem ser chamados de “semitas”, eu uso “antissemita” para significar “antijudaico”).

Em 27 de abril de 2019, um atirador abriu fogo contra uma sinagoga durante um serviço religioso de Páscoa, no condado de San Diego, Califórnia. Ele atirou em quatro pessoas, matando uma. Anteriormente, ele postou uma declaração online sobre como ele queria matar judeus. Isso ocorreu após o primeiro tiroteio na Sinagoga da Árvore da Vida em Pittsburgh, Pensilvânia, que matou 11 judeus praticantes. E houve a marcha iluminada por tochas de 2017 com nazistas e membros da Klan em Charlotte, Virginia, gritando, “Os judeus não vão nos substituir!” – o que resultou em um assassinato e vários feridos (NY Times, 05/01/19; p. A22).

É por isso que foi tão surpreendente quando o Presidente dos Estados Unidos, Donald J. Trump, não condenou os nazistas por sua manifestação em Charlotte (em vez disso, ele disse que havia “gente boa em ambos os lados” – fascistas e antifascistas – bem como “gente má em ambos os lados”). Em uma reação de horror, os nazistas foram condenados por líderes políticos de direita, lideranças religiosas, a maioria dos empresários ricos e oficiais militares de alto escalão. Como um todo, a classe dominante dos Estados Unidos não estava preparada para endossar o fascismo antissemita – pelo menos neste momento.

O aumento do antissemitismo está conectado ao aumento geral do racismo, do nativismo, da homofobia, da misoginia e da política odiosa do tribalismo, do qual Trump é tanto um sintoma quanto um encorajador. A sociedade norte americana (e mundial) tem sido agitada por crises econômicas, estagnação de longo prazo, áreas de pobreza em expansão, crises ambientais, ameaça de catástrofe climática, guerras ao redor do mundo e aumento maciço na migração de pessoas de nação para nação. Essas tensões aumentaram o impasse político nos governos dos EUA e outros países (porque esses problemas surgiram e aumentaram neste período é outra questão, veja Price, 2012). Há um enorme descontentamento em todos os setores da sociedade norte-americana. Tem havido uma polarização política, com nazistas marchando de um lado, enquanto alternadamente tem ocorrido um aumento na aceitação de várias minorias (sexuais, religiosas, culturais, etc.), oposição ao racismo e ao nativismo, o movimento #MeToo e o crescimento de um movimento abertamente “socialista”. O “centro” cai e o extremismo cresce na direita e na esquerda (falando aqui como um extremista da esquerda anarquista).

O homem que atacou a sinagoga de San Diego alegou que havia ateado fogo em uma mesquita vizinha. Foi inspirado, ele mesmo escreveu, pelo homem armado que atacou duas mesquitas da Nova Zelândia em março. O assassino que atacou a Sinagoga da Árvore da Vida escreveu que ficou furioso porque uma agência judaica ajudou os latinos que requisitavam asilo. Os “nacionalistas brancos” não restringem seu ódio louco aos judeus (o presidente Trump, que não condenava os nazistas em Charlotte, concentrou sua hostilidade racista nos muçulmanos e no povo latino).

Mas por que eles incluem os judeus? Os judeus são uma pequena parte da população (1,5%) e são quase todos brancos. Com o aumento de racistas, nativistas, etc, as tensões não levaram a um retorno ao preconceito contra os católicos, que já foram oprimidos e discriminados. A Klan costumava ser virulentamente anticatólica. Poderíamos esperar que fanáticos anti-imigrantes percebecem que a Igreja Católica geralmente é pró-imigrante e que os latinos requerentes de asilo são em sua maioria católicos. Apesar disso, não houve aumento do anticatolicismo. Da mesma forma, ainda existe uma boa dose de sentimento anti-mórmon nos EUA (que surgiu durante a corrida presidencial de Romney). No entanto, ninguém marchou, gritando “os mórmons não vão nos substituir.”

Nem o fascismo precisa ser necessariamente antissemita. O fascismo italiano original de Mussolini não era (até que seus aliados alemães pressionassem por isso). Mesmo nos EUA, existe um fascismo não antissemita. Por exemplo, Randall Terry, da Operação Resgate, anti-escolha, defendeu a derrubada da democracia burguesa e sua substituição por uma ditadura teocrática – com ele e seus amigos para falarem por Deus, é claro. Isso pode implicar em antissemitismo – a teocracia seria “cristã” afinal – mas não foi explícito sobre isso. Então, por que os judeus?

ANTISSEMITISMO “TRADICIONAL”

As causas do antissemitismo podem ser divididas em duas linhas. Uma são as causas tradicionais, aplicadas às tensões de hoje. A outra é afetada por um novo fator, a saber, o Estado de Israel. Deixe-me começar com o primeiro grupo de motivos (obviamente, não é antissemitismo os cristãos, muçulmanos ou ateus simplesmente discordarem da religião judaica ou mesmo tentarem converter os judeus aos seus pontos de vista).

Os nacionalistas buscam uma nação homogênea mítica, um único povo, completamente unificado. Essa unidade imaginada serve para disfarçar as divisões reais do país entre capitalistas e trabalhadores, além de outras divisões. Essa busca por homogeneidade pode parecer ridícula nos EUA, onde todos descendem de imigrantes, exceto os nativos americanos. Mas uma coisa que quase todos tinham em comum por gerações é que eram cristãos. Exceto pelos judeus, que não apenas não eram cristãos de nenhum tipo, mas também “rejeitaram” o cristianismo. Apesar de toda a conversa sobre uma “civilização judaico-cristã”, os judeus não se encaixam em uma América homogênea. Aqueles que buscam essa unidade nacional mística provavelmente reagirão a isso (esta também é uma razão para os fascistas rejeitarem os muçulmanos, apesar de se falar na existência de três “religiões abraâmicas”).

Uma parte essencial da ideologia fascista é a existência de uma cabala secreta que governa nos bastidores, buscando o controle total e a dominação mundial. Na verdade, realmente existe uma minoria poderosa que governa nos bastidores, isto é, a classe capitalista (apesar de suas divisões e facções). Isso não é, entretanto, uma conspiração. É um sistema social. A crença fascista em uma conspiração de elite do mal inclui elementos de realidade (uma vez que existe o poder da elite minoritária) e fantasia (que desvia a atenção dos governantes reais, os ricos corporativos).

Quem poderia ser projetado como uma elite secreta, mas poderosa? Os nacionalistas brancos veem os africanos-americanos como o inimigo. Mas sua fantasia estereotipada sobre os africanos-americanos é de que seriam pessoas estúpidas e preguiçosas. Usando essa mentira absurda, os racistas não podem então retratar os negros como uma elite poderosa, inteligente e astuta que governa grandes instituições. O mesmo vale para suas imagens preconceituosas de latinos, árabes e a maioria das pessoas de cor (os asiáticos são outro assunto).

Mas os estereótipos históricos sobre os judeus se encaixam no que os fascistas precisam para sua ideologia. Os judeus deveriam ser inteligentes, astutos, espertos, egoístas, coesos, gananciosos, excelentes nos negócios, ricos e assim por diante. Há séculos de imagens preconceituosas sobre eles, desde a hostilidade religiosa cristã original até teorias raciais malucas desenvolvidas no século XX.

Tem havido tentativas de inventar outros para se adequar à imagem da cabala secreta. Jerry Falwell, do movimento Maioria Moral, tentou pregar contra os “humanistas seculares” que pretendiam dominar os EUA. Mas isso nunca pegou. Existem outras conspirações imaginadas, como os “Illuminati”. Mas os judeus já estão aqui e estão “disponíveis” para serem retratados como a conspiração do mal – distraindo a população trabalhadora da verdadeira elite dominante, a burguesia e seus agentes.

Portanto, quando esta sociedade começa a entrar em crise, não deve ser surpreendente que a extrema direita eleve os judeus como a terrível conspiração que visa “nos substituir”.

ANTISSEMITISMO E ANTISSIONISMO

Após a Segunda Guerra Mundial, surgiu um novo fator para efetivar o antissemitismo. Este foi o estabelecimento do Estado de Israel em 1948, cumprindo o programa sionista. Anteriormente, muitas pessoas odiavam os judeus (como povo e como indivíduos) sem nenhuma razão justificável – isso era o antissemitismo. Agora, muitas pessoas odiavam o Estado de Israel por razões boas e justificáveis – o antissionismo. Essas duas concepções interagiram de várias maneiras.

Israel foi estabelecido principalmente por europeus que imigraram para um país pobre e colonizado do “Terceiro Mundo”. Os colonizadores tomaram conta do país, tomando as terras, expulsando a maior parte da população nativa e dominando o resto. Eles estabeleceram seu próprio Estado, definido como o Estado do “povo judeu” e não de todos aqueles que viviam no país. Eles estabeleceram uma economia capitalista e se tornaram parte do mercado mundial. Economicamente, militarmente e politicamente, o Estado israelense tornou-se intimamente ligado ao imperialismo dos EUA. Serviu como agente dos EUA na região, quando necessário.

Uma de suas principais justificativas foi o Holocausto, o assassinato de milhões de judeus pelos nazistas. No entanto, Israel não foi construído em terras alemãs nem expulsou os alemães locais. Foi construído em um terreno onde viviam árabes palestinos, que nada tiveram a ver com o genocídio de judeus por parte do Estado alemão.

O estabelecimento de um “Estado judeu” não produziu o que os sionistas esperavam. Não se tornou um “porto seguro” para judeus perseguidos. Na verdade, os judeus correm mais perigo em Israel do que em muitos outros países – certamente mais do que nos EUA, apesar do aumento dos atos antissemitas. Não serviu de ímã para atrair todos os judeus do mundo para “seu” país. A maioria dos judeus nos EUA ou na Europa não tem intenção de deixar seus países para migrar para lá. Pelo contrário, muitos israelenses estão migrando. Finalmente, Israel deveria tornar os judeus seguros, não tendo mais que depender de Estados não judeus. Mas o Estado israelense depende completamente do apoio de Estados capitalistas ocidentais (não judeus). Se os EUA cortassem seu apoio financeiro e militar a Israel, seria o fim da instituição sionista.

Os palestinos, e outros árabes, assim como muçulmanos, se opuseram ao Estado israelense desde o início. Eles se opuseram a serem eliminados de suas terras e de seu país. Eles têm razão em lutar como um povo (a maioria dos quais são camponeses e trabalhadores, bem como pequenos comerciantes). É justo que anarquistas, radicais e pessoas progressistas em todos os lugares também se oponham ao Estado israelense e geralmente sejam solidários com o povo palestino (ser solidário com um povo oprimido não significa necessariamente concordar com os programas políticos e estratégicos dos líderes de várias facções. Em particular, os anarquistas não concordam com o nacionalismo como um programa, seja para os judeus ou para os palestinos).

Não surpreendentemente, muitos (não todos) palestinos e seus apoiadores pensam em termos nacionalistas, de bloco. Assim como os sionistas viam todos os alemães como “nazistas” e veem todos os palestinos como supostos “terroristas”, muitos palestinos e outros veem os sionistas como “os judeus”. É verdade que o Estado israelense é esmagadoramente apoiado por seus cidadãos judeus. E o povo judeu nos Estados Unidos e na Europa também dá apoio em grande escala a Israel. As instituições judaicas oficiais, religiosas e políticas, apoiam fortemente Israel. O lobby pró-Israel é uma influência poderosa no governo dos EUA.

Ainda assim, é um erro terrível ver todos os judeus como sionistas e ver o povo judeu como o Estado sionista. Isso ignora os muitos judeus que apoiaram a causa palestina. Ignora os jovens judeus que têm menos apego a Israel. Ele ignora os muitos judeus que apoiam o movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções contra Israel. Ele ignora o fato de que a maioria dos judeus nos EUA e na Europa, quaisquer que sejam seus pontos de vista, não tem controle sobre as ações do Estado israelense e não obtém benefícios de sua existência.

Alguns partidários dos palestinos são, definitivamente, antissemitas. Mas há muitos apoiadores dos palestinos que às vezes podem cometer equívocos antissemitas. Mas o antissemitismo não é central para o antissionismo ou importante para essas pessoas.

É diferente dos que abertamente odeiam os judeus, como os nazistas. Nem é preciso dizer que eles não têm simpatia genuína pelos palestinos. Nacionalistas brancos desprezam árabes e muçulmanos. Eles usam o antissionismo como uma cobertura para seu antissemitismo. Eles exageram o poder que Israel tem no mundo, a fim de fazer os judeus parecerem mais assustadores. Eles retratam Israel como controlador da política externa (e doméstica) dos Estados Unidos. Enquanto a esquerda condena Israel como um agente do imperialismo dos EUA no Oriente Médio, a direita condena Israel como uma grande potência mundial que domina os EUA. Apesar das diferenças ocasionais entre os EUA e Israel, os políticos dos EUA apoiam o Estado israelense porque pensam que este é no interesse do imperialismo dos EUA.

Existem ativistas e teóricos na esquerda dos EUA cujo antissionismo se transforma em antissemitismo. Existem até mesmo “anarquistas” (que se autodenominam “Nacionais Anarquistas”) que são antissemitas e fascistas. O site de Keith Preston, “Ataque o Sistema”, inclui anúncios para sua literatura e relatórios sobre suas conferências (ver Price, 2017). Mas eles são uma corrente minúscula e muito menos importante do que os fascistas abertamente de direita.
Os sionistas tentam equiparar o antissemitismo de esquerda com o da direita. Eles procuram fazer com que toda oposição a Israel pareça defender antissemitismo. Por exemplo, o CEO da Liga Anti-Difamação, Jonathan Greenblatt, disse: “Nenhum dos lados do espectro político está isento da intolerância. A ideia de que este é um problema com apenas um lado está errada”. No entanto, as próprias estatísticas da Liga descobriram que dos 1.879 atos antissemitas cometidos nos EUA em 2018, 71% foram feitos por direitistas. Nenhum desses atos (0%) foi cometido por indivíduos de esquerda. Quatro foram cometidos por indivíduos “islamistas”. (Adkins, 2019) O perigo para os judeus dos EUA vem principalmente da direita.

CONCLUSÕES POLÍTICAS

O perigo de um fascismo antissemita e racista surge durante um período de declínio, caos e aumento do sofrimento popular. Em baixo, as pessoas procuram respostas e algumas (talvez muitas) são atraídas para a direita, incluindo a extrema-direita. Enquanto isso, em cima, setores da classe capitalista devem concluir que o sistema (relativamente) “democrático” não está funcionando a seu favor, que há uma ameaça de esquerdistas, trabalhadores, pessoas de cor, mulheres e outros – uma ameaça que deve ser reprimida. Então os capitalistas se dispõem a “contratar” os fascistas para assumir o Estado.

Não estamos nessa fase. Há uma grande virada para a direita, conforme expresso em aproximadamente 40% da população que apoia Trump, não importa o que aconteça, visto que seguem de perto a Fox News. Essas pessoas, em sua maioria, não são fascistas. Eles não querem derrubar a democracia representativa capitalista. Mas eles apoiam o autoritarismo de várias maneiras, e são motivados pelo nativismo e pelo racismo. Enquanto isso, os grandes círculos empresariais certamente não estão preparados para derrubar a democracia capitalista. Mas eles apoiaram Trump e suportaram seu racismo vil.

Se o futuro trouxer prosperidade, paz social e estabilidade, então o perigo do fascismo – e o aumento concomitante do antissemitismo – morrerá. Mas se o próximo período conter decadência social, declínio econômico e crises, catástrofes ambientais, guerras crescentes e mais instabilidade – como acredito que aconteça – então poderemos esperar mais descontentamento político e polarização. Isso significará um declínio político do “centro” convencional. Haveria um aumento de uma direita autoritária (incluindo fascistas) e de uma esquerda socialista (tanto uma esquerda libertária / radicalmente democrática quanto uma esquerda autoritária-estatista). Pode-se esperar que o antissemitismo cresça à direita.

Portanto, oposição ao antissemitismo significa oposição ao fascismo e à direita política. Além disso, a oposição ao antissemitismo significa oposição ao Capitalismo e a luta por um melhor sistema social de cooperação, produção para uso, democracia participativa e equilíbrio ecológico.

O antissemitismo deve ser parte integrante de todas as lutas progressistas. Deve ser combatido como parte da decadente cultura política capitalista, junto com o nacionalismo branco, o nativismo, o sexismo, a homofobia, o privilégio de classe, a islamofobia e todas as formas de preconceito e ódio irracional. O verdadeiro inimigo é a classe dominante capitalista, seu Estado e todas as formas de opressão.

O antissionismo não é em si antissemitismo. A solidariedade com o povo palestino e a oposição ao Estado israelense devem fazer parte de um programa internacionalista de libertação. Mas não se deve permitir que o antissionismo seja usado como um disfarce para um programa real de ódio aos judeus.

O antissemitismo não pode ser tratado como um problema em si, distinto das outras tensões de uma sociedade capitalista em crise. Só terminará quando todas as formas de exploração e opressão terminarem.

07 de Maio de 2019

REFERÊNCIAS

Adkins, Laura E. (2019). “Right-Wing Responsible For 71% Of Anti-Semitic, Extremist Incidents: ADL” https://forward.com/fast-forward/423538/right-wing-responsible-fo…-adl/
Price, Wayne (2012). “Living through the Decline of Capitalism.” https://www.anarkismo.net/article/24227
Price, Wayne (2017). “A Conference of the ‘National Anarchists.’ “ https://www.anarkismo.net/ article/30386

Fonte: http://anarkismo.net/article/31413
Original: Publicado em The Utopian, Volume 1.
Tradução do Inglês ao Português: Arthur Castro