Wayne Price. “Os Anarquistas São Socialistas?”

OS ANARQUISTAS SÃO SOCIALISTAS?
Os Anarquistas deveriam ser Socialistas (Libertários)? Os Socialistas deveriam ser Anarquistas?

 

Muitos anarquistas norte-americanos, ou radicais interessados no anarquismo, ficam surpresos ao ouvir falar de “anarquismo” como sendo “socialista”. A maioria da população dos EUA aprendeu a pensar em “socialismo” como sinônimo de indústria estatal – o que seria o oposto do anarquismo (de igual maneira, “comunismo” é geralmente compreendido como totalitarismo stalinista). “A esquerda” também é frequentemente interpretada como apoio a esses programas econômicos tutelados pelo Estado. Esta foi a imagem do socialismo propagada pela classe dominante norte-americana, bem como por seus oponentes na União Soviética e em Estados semelhantes.

Então, que tipo de economia os anarquistas defendem? Eles são anticapitalistas e querem tirar a riqueza e o poder da elite capitalista. Eles querem substituir a propriedade privada dos meios de produção pela propriedade coletiva e socializada – substituir a competição econômica pela cooperação – substituir a produção para lucro pela produção para uso – substituir a divisão em classes pela sociedade sem classes, sem ricos ou pobres, sem especialistas em dar ordens governando sobre especializados em obedecer. Um sistema caótico e competitivo seria substituído por uma coordenação democrática geral (planejada) vinda de baixo. Tudo isso é inteiramente consistente com o resto do programa anarquista de abolir o Estado e todas as outras formas de opressão: racial, nacional, gênero, orientação sexual e assim por diante. O que seria esta proposta sem finalidade lucrativa, cooperativa, em economia senão socialismo?

Na verdade, de fato, todos os anarquistas, desde o início, se autodenominaram “socialistas” (e alguns também se autodenominaram “comunistas”). Ao mesmo tempo, eles sempre se consideraram “socialistas libertários” ou “anarquistas-socialistas”, à esquerda dos – e em oposição aos – “socialistas autoritários” ou “socialistas de Estado”. Bem antes da Revolução Russa, eles argumentaram que – independente de quais sejam os desejos subjetivos dos socialistas de Estado – na prática esse programa apenas criaria uma modalidade de capitalismo de Estado (com a burocracia do Estado agindo como a nova classe exploradora e capitalista).

A primeira pessoa a se identificar como “anarquista” foi Pierre-Joseph Proudhon. Proudhon geralmente “se descrevia como um socialista (…) Embora criticasse a democracia centralizada e o socialismo de Estado, ele ainda se considerava um democrata e socialista (…) Como Bakunin e Kropotkin, ele argumentou contra o socialismo de Estado e clamou por um processo descentralizado e autogerido, federal, ascendente, socialista: anarquismo” (McKay 2011; 23).

Em seu texto de 1910 denominado “Anarquismo”, escrito para a Enciclopédia Britânica, Piotr Kropotkin escreveu: “Quanto às suas concepções econômicas, os anarquistas, em comum com todos os socialistas, dos quais constituem a ala esquerda (…) consideram o sistema de salários e a produção capitalista como obstáculos ao progresso (…) Os anarquistas lutam com a mesma energia contra o Estado, principal suporte desse sistema (…) Entregar ao Estado todas as principais fontes da vida econômica (…) significaria instituir um novo instrumento de tirania. O capitalismo de Estado apenas aumentaria os poderes da burocracia e do capitalismo” (Kropotkin 2014; 164-5; grifo meu).

O grande anarquista italiano Errico Malatesta era o camarada mais jovem de Bakunin e Kropotkin. Em 1897 ele escreveu, argumentando contra os “socialistas democráticos”: “A partir de 1871, quando começamos nossa propaganda na Itália, sempre fomos e sempre nos chamamos de socialistas anarquistas (…) Sempre fomos da opinião de que o socialismo e a anarquia são duas palavras que têm basicamente o mesmo significado, já que é impossível haver emancipação econômica (abolição da propriedade) sem emancipação política (abolição do governo) e vice-versa” (em Richards 1984; 143; ênfase no original).

Malatesta apoiou a versão “anarco-comunista” de Kropotkin do socialismo anarquista, mas parou de usar o rótulo “comunista” após a Revolução Russa. Ele ainda se identificava com essa tradição e com o objetivo final de uma sociedade comunista libertária. Mas ele sentia que os leninistas haviam dado ao termo “comunismo” uma reputação autoritária. Em vez disso, Malatesta se referiu a si mesmo como um “anarquista-socialista revolucionário”.

Noam Chomsky cita as opiniões do anarcossindicalista Rudolf Rocker indicando que “o anarquismo pode ser considerado a ala libertária do socialismo” (Chomsky 1970; xii). Chomsky cita ainda um dos Mártires de Haymarket, Adolph Fischer: “Todo anarquista é um socialista, mas nem todo socialista é necessariamente um anarquista”. (xii)

Então, pela teoria e pela história, o anarquismo hegemonicamente é uma ala da tradição socialista. Alguns dos anarquistas de hoje atacam o “socialismo” e a “esquerda” por motivos – estatismo, autoritarismo, reformismo, mau uso da tecnologia, sexismo – que os anarquistas clássicos há muito denunciavam. No entanto, os primeiros anarquistas eram claros de que não estavam condenando o “socialismo”, mas o “socialismo de Estado”. Eles se consideravam muito à esquerda da esquerda autoritária. Portanto, eles não viram necessidade de rejeitar o “socialismo” como tal.

“LIBERTÁRIOS” DE DIREITA E SOCIALISTAS DE ESTADO “DEMOCRÁTICOS”

Este argumento pode parecer abstrato e ultrapassado, mas também existem motivos atuais para anarquistas utilizarem o termo “socialista”. Uma das razões é o crescimento de um movimento pró-capitalista “libertário”. Os anarquistas precisam se distinguir dessa tendência que é relativamente influente. Ela se baseia em alguns dos mesmos motivos que atraem as pessoas para o anarquismo – oposição às leis de drogas, à supressão de armas, às leis sexuais e a outras formas de opressão estatal. Quando os anarquistas falam sobre seus pontos de vista, eles são frequentemente acusados por pessoas de esquerda de soarem como esses pseudolibertários. Infelizmente, esses direitistas usam o mesmo rótulo “libertário” que os anarquistas usam desde o século XIX.

Esses “libertários” possuem variantes, desde os republicanos que apoiam Trump ao Partido Libertário e alguns que se consideram anarquistas. Como absolutistas do livre mercado, eles se opõem às leis que protegem a saúde pública ou a segurança do trabalhador. Alguns defendem um “Estado mínimo”, enquanto outros se autodenominam “anarco-capitalistas” (o que não faz sentido). Estes últimos são contra o Estado burocrático centralizado, mas não se opõem aos monopólios corporativos burocráticos centralizados. Eles substituiriam o Estado por exércitos privados de “policiais de aluguel” contratados pelos ricos – que se tornariam, na verdade, o novo Estado.

Esses pseudolibertários afirmam seguir a tradição do “anarquismo individualista”. Esta tradição é um tanto distinta da corrente principal do anarquismo revolucionário de Proudhon, Bakunin e Kropotkin em diante. Muitos anarquistas (como Emma Goldman ou Daniel Guerin) procuraram integrar as percepções do anarquismo individualista com o anarquismo socialista. De qualquer forma, os anarquistas individualistas nunca foram partidários do Capitalismo e às vezes se autodenominavam “socialistas”. Um de seus fundadores, Benjamin Tucker, escreveu em 1893 sobre “os dois princípios (…) Autoridade e Liberdade” sendo a base “das duas escolas de pensamento socialista (…) respectivamente, Socialismo de Estado e Anarquismo” (Krimerman & Perry 1966; 62).

Iain McKay argumenta: “O anarquismo sempre foi uma teoria socialista e o conceito de um ‘anarquismo’ que apoiasse o sistema econômico sob o qual o anarquismo nasceu se opondo é um absurdo” (McKay 2008; 7; ênfase no original). Portanto, é importante que os anarquistas se identifiquem como “socialistas libertários” e “anarquistas-socialistas” a fim de se distinguirem desses falsos defensores “libertários” da exploração e da opressão.

Outra tendência atual com a qual os anarquistas devem dialogar é a ascensão do “socialismo democrático” (ou “socialdemocracia”). Devido a vários fatores, incluindo os óbvios fracassos do Capitalismo, uma parcela considerável foi atraída por esse tipo de “socialismo”. Uma olhada nas pesquisas políticas na última década revela, de forma bastante consistente, que um número relevante de pessoas (entre 30 a 40 por cento) simpatiza com o “socialismo”. Embora seja uma minoria, é quase a mesma proporção da população que apoia o presidente Trump! É importante ressaltar que os jovens adultos têm maior probabilidade de ter uma visão positiva do socialismo e uma visão negativa do Capitalismo – de 40 a 50 por cento (a votação é resumida em Price, 2018). Isso se reflete na posição significativa mantidas por Bernie Sanders nas primárias presidenciais democratas, apesar de sua auto-identificação como um “socialista democrático”. Isso também se reflete no rápido crescimento dos Socialistas Democráticos da América (DSA) para cerca de 60.000 membros.

O que as pessoas querem dizer com “socialismo” ou “socialismo democrático” é muito incerto (o próprio Sanders não defende a expropriação dos ricos nem a socialização de grandes setores da indústria; seu modelo, diz ele, são os países nórdicos, como a Dinamarca, que são países capitalistas com grandes benefícios de bem-estar – benefícios que agora estão sob ataque). O próprio DSA é “multitendência”. Ele até tem um Caucus Socialista Libertário. Mas sua tendência predominante envolve o uso do sistema eleitoral do Estado capitalista – por “democrático” eles querem dizer trabalhar dentro do sistema eleitoral da democracia representativa capitalista (limitada). Para a maioria deles, isso significa participar do Partido Democrata (apoiando Sanders e alguns outros, como Alexandria Ocasio-Cortez). Isso é para propor reformas que supostamente podem levar a uma sociedade socialista. Ou seja, eles são socialistas de Estado reformistas. Alguns deles se consideram “revolucionários”, mas não defendem abertamente a derrubada do Estado existente.

Não que os “socialistas democráticos” proponham abertamente uma economia completamente centralizada e administrada pelo Estado. Isso não é mais possível nem mesmo para a esquerda. Eles também são favoráveis à gestão de trabalhadores, cooperativas de consumidores e indústria local de propriedade municipal. Os anarquistas-socialistas também incluem tais conceitos dentro de seu programa geral de economia autogerida – um programa que só pode ser alcançado através da derrubada do Estado. Mas para esses “socialistas democráticos”, tais ideias caminham junto com a indústria nacionalizada e as reformas impostas pelo Estado (capitalista) existente (veja suas propostas para um “New Deal Verde”; Price, 2019).

Os anarquistas-socialistas revolucionários devem ter uma abordagem bilateral para este crescimento do interesse pelo socialismo. Por um lado, eles precisam dar as boas-vindas à nova e popular hostilidade ao Capitalismo e à abertura para sistemas alternativos, resumida como “socialismo”. Este não é o momento para os anarquistas rejeitarem o “socialismo”. Os anarquistas também fazem parte do movimento socialista e sempre fizeram.

Por outro lado, eles devem se opor a todas as variedades de socialismo de Estado, tanto reformista (atuando através do Estado existente) quanto “revolucionário” (buscando derrubar este Estado e estabelecer um novo Estado – a “ditadura do proletariado” ou qualquer outra coisa semelhante). Os anarquistas são os socialistas autênticos, eles devem dizer. Os socialistas reformistas de Estado apenas manterão o sistema capitalista existente – um sistema em crise que não pode mais fornecer reformas significativas. Alternativamente, os socialistas de Estado revolucionários (Marxistas-Leninistas) iriam, se bem sucedidos, apenas criar um novo sistema de Capitalismo de Estado.

O movimento radical dos “anos sessenta” também começou com um programa reformista. Os Estudantes por uma Sociedade Democrática, a organização então dominante, começou como o grupo de jovens da Liga para a Democracia Industrial. Este era um órgão socialdemocrata que incluía Michael Harrington (que mais tarde fundou o DSA). Foi somente com o tempo que a jovem esquerda se desenvolveu em uma direção revolucionária – embora dominada pelo estatismo leninista.

O padrão de movimento do reformismo ao socialismo revolucionário provavelmente se repetirá – desta vez, esperançosamente, em direção ao socialismo libertário. As crises em curso nos EUA e no Capitalismo mundial empurrará a atual radicalização ainda mais para a esquerda. Os reformistas não serão capazes de oferecer soluções reais para os desastres que se abatem sobre a sociedade. Não estou propondo direções táticas específicas (deveriam os anarquistas aderir à DSA enquanto se opõe a seu eleitoralismo e estatismo, ou deveriam construir organizações independentes?). Mas os anarquistas-socialistas revolucionários deveriam se preparar para desenvolvimentos futuros organizando-se agora.

18, Fevereiro, 2020

REFERÊNCIAS

Chomsky, Noam (1970). “Introduction.” In Daniel Guerin. Anarchism; From Theory to Practice. NY: Monthly Review Press. Pp. vii—xx.
Krimerman, Leonard, & Perry, Lewis (Eds.) (1966). Patterns of Anarchy; A Collection of Writings on the Anarchist Tradition. Garden City NY: Anchor Books/Doubleday.
Kropotkin, Peter (2014). Direct Struggle Against Capital; A Peter Kropotkin Anthology (Iain McKay ed.). Oakland CA: AK Press.
McKay, Iain (2008). An Anarchist FAQ; Volume one. Oakland CA: AK Press.
McKay, Iain (2011). “Introduction.” Property is Theft! A Pierre-Joseph Proudhon Anthology. (I. McKay ed.) Oakland CA: AK Press. Pp. 1—52.
Price, Wayne (2018). “The Revival of U.S. Socialism—And an Anarchist Response.” https:// www.anarkismo.net/article/30763
Price, Wayne (2019). “A Green New Deal vs. Revolutionary Ecosocialism.” https://www.anarkismo.net/ article/31250
Richards, Vernon (Ed.) (1984). Errico Malatesta; His Life and Ideas. London UK: Freedom Press

Original: http://anarkismo.net/article/31755
Tradução do Inglês ao Português: Arthur Castro