Wayne Price. “O Trumpismo é Fascismo?”

O TRUMPISMO É FASCISMO?

Wayne Price

 

Quer Donald J. Trump ganhe ou (mais provavelmente) perca a eleição presidencial dos EUA de 2016, o movimento que ele instigou continuará de uma forma ou de outra. Uma pergunta amplamente feita é: esse movimento – chamemo-lo de Trumpismo – é fascista, semifascista ou um precursor do fascismo?

Inquestionavelmente, ele tem sido apoiado por fascistas declarados, nazistas americanos, supremacistas brancos, membros da Ku Klux Klan e outros da “direita alternativa” ou “alt-right“, como eles se autodenominam. Ele repetidamente tuitou postagens de nazistas e da Klan, citou Mussolini e adotou o slogan “America First” (América em Primeiro, em tradução livre) do movimento America First, dominado pelos pró-fascistas, da era pré-Segunda Guerra Mundial. Ele expressou admiração por ditadores e governantes “fortes” de outros países. Ele nomeou um notório antissemita e racista como um oficial superior (“C.E.O”) em sua campanha (Bannon, anteriormente o principal representante do Brietbart News). Quando questionado sobre seu apoiador, David Duke (nazista e homem chave da KKK), ele timidamente negou saber qualquer coisa sobre ele, até uma data posterior, quando Trump rejeitou oficialmente Duke; Duke e outros supremacistas brancos interpretaram isso como “algo que Trump foi obrigado a dizer”. Hillary Clinton, sua oponente, denunciou o apoio à Trump da direita alternativa e outras pessoas “deploráveis“. Trump respondeu que seus seguidores eram todos bons, patrióticos, americanos. Enquanto isso, vários grupos de direita alternativa deram uma coletiva de imprensa conjunta em Washington D.C., expondo seu apoio a Trump e expressando abertamente seu racismo branco (eles afirmam ser uma “alternativa” aos “conservadores” de extrema-direita mais convencionais, que se apresentam como opostos ao racismo e em defesa de um “Estado mínimo“).

Essas ações ocorrem no contexto de uma eleição em que a candidata do establishment, Clinton, é amplamente odiada ou, no máximo, pouco inspiradora para a massa de eleitores (apesar de ser uma mulher). Uma grande proporção do eleitorado está desgostosa com ambos os candidatos e rejeita votar em qualquer um deles.

O ponto geral não é apenas que Trump está flertando com os extremistas marginalizados e abriu a porta para eles, ou que Clinton não parece oferecer uma opção. Ainda mais significativo é que essas pessoas veem algo de que gostam na campanha da indicação de um importante partido político dos EUA. Eles gostam de seu ódio abertamente expresso por imigrantes, latinos e muçulmanos, e seu ódio implícito aos africanos-americanos, sua misoginia, seu isolacionismo de alguma forma combinado com militarismo e seu autoritarismo geral e oposição às liberdades civis. Eles gostam de seus apelos à violência e de sua pose de líder “forte” que vai consertar tudo para o povo dos EUA. Eles estão corretos? Trump é um fascista ou o Trumpismo um movimento fascista?

 

FASCISMO CONTRA A DEMOCRACIA BURGUESA

Fascista” é frequentemente usado como um insulto, um rótulo para a política que não gostamos de direita ou esquerda. Muitas pessoas (mesmo alguns anarquistas) têm uma visão essencialmente liberal da democracia capitalista. Eles acreditam ou tem fé na imagem de uma sociedade livre e democrática que aprenderam na escola. Eles ficam então chocados ao saber que o governo dos Estados Unidos espiona seus cidadãos, tortura prisioneiros, discrimina a classe trabalhadora, a população pobre e as pessoas de cor, trava guerras injustas e geralmente é um servo dos ricos. Isso não é democracia! eles choram. É a ditadura, fascismo! Eles não entendem que isso é a democracia capitalista. A democracia burguesa é e sempre foi limitada. Todo ganho democrático no sistema foi conquistado pelo sangue e pela luta da massa do povo.

Basta lembrar os anos 50, quando os EUA se orgulhavam de sua liberdade e democracia, tendo derrotado as potências fascistas na Segunda Guerra Mundial e enfrentavam os Estados comunistas na Guerra Fria. Na realidade, a política dos EUA estava dominada pela histeria anticomunista, quando milhares de pessoas de esquerda foram expurgadas de empregos no governo, universidades, escolas e sindicatos. Enquanto isso, um terço do país vivia sob a segregação racial legalizada da Jim Crow, imposta pelo terror da Klan. Para mudar tudo isso, foi necessária a rebelião massiva da população africana-americana e seus aliados brancos, e as manifestações e rebeliões do movimento contra a Guerra no Vietnã – e um eventual motim nas forças armadas (não foram as eleições que mudaram a sociedade para melhor, mas as ações de massa independentes – algo que vale a pena lembrar neste ano eleitoral).

Também há quem pense que o “fascismo” deveria ser usado apenas para os exemplos históricos do Partido Fascista da Itália, dos Nacional-Socialistas Alemães (nazistas) liderados por Hitler e vários outros movimentos e partidos na Europa nos anos 20 e 30. No entanto, acredito que certas características dos partidos fascistas históricos podem ser extraídas e aplicadas aos eventos atuais. Embora a história nunca se repita exatamente, lições podem ser aprendidas com o passado.

A característica mais importante do fascismo é seu objetivo de derrubar a democracia burguesa e substituí-la pelo regime ditatorial. Sob uma economia capitalista, a sociedade é dominada por um pequeno número de pessoas muito ricas (capitalistas, a burguesia, uma fração de “um por cento”). Sem qualquer controle democrático, eles possuem as corporações e negócios semimonopolistas para os quais quase todos trabalham, direta ou indiretamente. Do trabalho da massa popular (a classe trabalhadora ou proletariado), eles retiram seus vastos lucros, enquanto pagam aos trabalhadores o mínimo que podem ganhar.

Eles insistem em um governo que proteja seus interesses: faça cumprir contratos, mantenha o suprimento de dinheiro estável, evite que a classe trabalhadora se rebele, proteja seus interesses internacionalmente (indo à guerra quando necessário) e assim por diante. Enquanto o governo cumprir essas tarefas, ele será um Estado burguês. No entanto, o governo pode assumir várias formas, ao mesmo tempo que protege o capitalismo.

Em uma democracia capitalista, as pessoas podem votar em funcionários para cargos de liderança, como presidente (depois de votar, voltam para seus empregos, onde recebem ordens de seus chefes não eleitos). É claro que as alternativas são limitadas. Em 2016, poderemos escolher entre duas pessoas ricas, ambas apoiantes entusiastas do Capitalismo e de seu Estado nacional – e assim tem sido ao longo da história dos EUA (os candidatos de outros partidos não tiveram chance desde que os republicanos foram eleitos às vésperas de uma guerra civil).

Existem vantagens para a classe capitalista nesta democracia política limitada. Permite que diferentes facções da classe dominante lutem contra seus rivais e tomem decisões conjuntas, sem (muito) derramamento de sangue. Permite enganar a maioria das pessoas, dizendo que são livres e comandam o governo. Traz novos talentos das massas (pense nos Clintons ou nos Obama). Se eles conseguirem um líder louco ou incompetente (digamos, se Trump for eleito), eles podem se livrar dele ou dela na próxima eleição, em vez de ficarem presos a ele (como o establishment alemão ficou com Hitler, até o fim da Segunda Guerra Mundial).

Por outro lado, existem desvantagens para os ricos corporativistas, especialmente se as forças populares usarem sua aparente liberdade “demais“. Podem haver distúrbios, greves e outras expressões de descontentamento. Alguém pode realmente concorrer em um partido importante como um “socialista” defendendo a “revolução política”, como Bernie Sanders fez (embora seu programa fosse sempre moderado – sem expropriar os capitalistas – e ele rapidamente se alinhou assim que perdeu as primárias, como certamente faria). Ou um candidato pode ser escolhido para a nomeação de um partido que obviamente seria incapaz de dirigir efetivamente o ramo executivo do governo nacional (a burguesia está mais preocupada com a óbvia incompetência de Trump do que com seu programa reacionário).

Enquanto isso, a abertura e os direitos de uma democracia burguesa são imensamente valiosos para os radicais (anarquistas, socialistas, comunistas, pacifistas, nacionalistas negros, feministas, etc.). Embora sejam minúsculas minorias, eles são capazes de se organizar, desenvolver teoria e estratégia, publicar suas opiniões e falar a outras pessoas. Isso apesar de sua oposição ao Capitalismo, ao Estado e outras instituições de opressão (Patriarcado, Supremacia branca, Imperialismo, destruição ecológica, etc.). A burguesia tolera isso enquanto os radicais permanecerem em minúsculas minorias; mas sempre existe o “perigo” de que cresçam em tempos de crise.

 

O QUE É FASCISMO?

O sistema capitalista como um todo está em declínio, enfrentando crises, estagnação de longo prazo e uma necessidade cara e drástica de lidar com as mudanças climáticas. Isso requer que os capitalistas e seu Estado reduzam o padrão de vida da classe trabalhadora para aumentar os lucros gerais. Tem havido um ataque constante de longo prazo à classe trabalhadora. Uma reação contra isso alimentou o movimento de Sanders na esquerda e o apelo de Trump na direita (falando de motivações populares, não do valor dos programas reais). Se as crises continuarem a piorar e se a reação às condições capitalistas causar mais rebeliões e se a parcela radical crescer em número e influência – então a burguesia pode decidir jogar fora as vantagens da democracia política e substituí-la por uma ditadura aberta.

Em sua história, o Capitalismo existiu sob uma série de diferentes sistemas políticos – enquanto manteve seu sistema econômico. Além de várias formas de democracia política (algumas bastante limitadas), existiu sob monarquias, Estados policiais, juntas militares, “democracia” para apenas uma raça (Apartheid na África do Sul e nos estados sulistas dos EUA), assim como sob regimes fascistas. Sob o fascismo e outros governos capitalistas não democráticos, não houveram eleições, nem partidos políticos alternativos, nem sindicatos, nem greves, nem organizações políticas radicais, nem imprensa de oposição, nem direito de reunião. Esses regimes diferiam no grau de supressão. Algumas (a maioria das monarquias, por exemplo) permitiam às pessoas muita liberdade, desde que não desafiassem o regime. O fascismo era o mais repressivo, procurando dominar totalmente todos os aspectos da sociedade, da política e da religião, até dos clubes de xadrez. Assim, eles foram chamados de “totalitários“. Eles exigiram que todos declarassem seu apoio ao Estado, ao partido e ao líder.

Esmagar totalmente todas as organizações e agrupamentos independentes, da classe trabalhadora e de todas as outras partes da sociedade, exigia mais do que um golpe militar. Requer a movimentação de milhões de pessoas. Os fascistas de Mussolini e os nazistas organizaram um grande número de pessoas descontentes, principalmente de veteranos desempregados e pessoas de classe média baixa que odiavam os ricos, mas tinham medo de cair na classe trabalhadora. Eles não apenas publicaram jornais e fizeram discursos, mas saíram para espancar – e assassinar – socialistas, comunistas, anarquistas e sindicalistas.

Embora sempre extremamente nacionalista, o fascismo nem sempre foi racista. O fascismo italiano não era racista (tinha membros judeus) até seus últimos dias, quando foi dominado pelos alemães. Nos EUA, como mencionado, a extrema-direita conservadora padrão (realmente reacionária) negou ser racista, seja anti-negra ou antissemita. Enquanto a maioria desses conservadores ainda são a favor da democracia burguesa, sentimentos fascistas são expressos às vezes. Ocasionalmente, porta-vozes dirão que se a “tirania” do governo continuar, então “remédios da segunda emenda” serão solicitados e os “patriotas” terão que ir para o campo para se defenderem com armas. Na verdade, existem vários grupos de “milícias” armadas. Eles têm várias ideologias, mas alguns estão se preparando para resistir ao governo quando esse (acreditam eles) decidir tirar suas armas. Isso pode ser expresso em termos de democracia local ou uma interpretação maluca da Constituição, mas o que está implícito é a derrubada armada do governo eleito. Esse é um elemento, pelo menos, do fascismo (da mesma forma, Trump insinuou, em seus discursos, que os defensores da Segunda Emenda deveriam assassinar Clinton se ela for eleita). Além disso, partes do movimento anti-escolha insistem que “a lei de Deus” deve estar acima da “lei do homem“. É uma forma de apelar à substituição da democracia burguesa por uma teocracia, na qual os seus dirigentes dariam ordens ao resto da população, ao mesmo tempo que afirmam falar pelo Todo-Poderoso.

Mas o racismo está profundo na consciência dos EUA, apesar de seu declínio entre alguns setores da população. Até mesmo os conservadores supostamente não racistas defendem programas que visam especificamente africanos-americanos e latinos (como leis de supressão de eleitores e cortes nos serviços públicos). Apesar das negações do antissemitismo (e do apoio à Israel), a direita enfatiza sua fé cristã e clama por uma “América cristã“.

Não é surpreendente, então, que haja uma seção da extrema direita que é abertamente supremacista branca e antissemita. Eles dizem explicitamente o que a direita respeitável apenas insinua. Eles acreditam que, para impulsionar um movimento de massa para a derrubada da democracia política, é necessário apelar abertamente ao racismo de grande parte da população branca dos EUA (e por que antissemitismo? Porque o estereótipo racista dos africanos-americanos e latinos é que eles são “estúpidos” e “preguiçosos“. Seus estereótipos não são úteis para a fantasia de uma conspiração secreta do mal que está dominando a sociedade. A imagem racista sobre os judeus pode se encaixar neste quadro ameaçador. A direita tentou usar outros agrupamentos, como os “humanistas seculares” ou os “Illuminati“, mas nenhum substituiu totalmente a imagem dos judeus).

 

OS ESTADOS UNIDOS ESTÃO CAMINHANDO PARA O FASCISMO?

Existem forças que poderiam se aglutinar em um movimento fascista nas circunstâncias certas. A campanha de Trump revelou a existência de tais forças como um pedaço de fruto, que maduro demais, uma vez aberto, revela seus vermes. Mas ainda não é um partido fascista coerente. Seu líder, Trump, fica feliz em obter o apoio da direita alternativa. A ideologia elaborada deles é consistente com muitos de seus preconceitos, mas ele próprio não tem uma ideologia desenvolvida. Embora goste da adulação das multidões, ele não tem as habilidades de organização para reunir um verdadeiro partido fascista, nem tem interesse.

Enquanto isso, o núcleo de seus seguidores, fora da direita alternativa, embora aceite a maioria de suas provocações, não deseja atualmente a derrubada da democracia capitalista. E, certamente, a maioria dos republicanos que votam nele porque são leais ao partido ou odeiam Clinton não querem isso. As condições são ruins em muitos aspectos, mas ainda não tão ruins.

Mais importante de tudo, a classe capitalista, em quase todas as suas seções, não quer se livrar da democracia. Mesmo a ala direita, que apoiou todos os tipos de extrema-direita, não apoiou Trump (dos líderes das 100 maiores corporações da Fortune, ninguém fez doações a Trump; nem os irmãos Koch). Eles não estão prontos para apoiar um movimento fascista, muito menos uma tomada fascista do Estado. Em qualquer caso, eles não querem colocar um tolo tão incompetente, ignorante e impulsivo no comando do Estado.

Se a crise piorar, se houver mais rebelião (que a burguesia vai querer que seja canalizada para um movimento pro-capitalista em oposição ao anticapitalismo revolucionário), e se um líder mais competente surgir, então a classe capitalista pode decidir de forma diferente .

Acredito, e argumentei anteriormente, que no geral as coisas vão piorar – apesar de aumentos temporários e recuperações superficiais. A economia capitalista continuará em declínio. As guerras continuarão a ocorrer em todo o mundo, ameaçando uma conflagração mais ampla (e uma guerra nuclear). O aquecimento global continua em uma taxa crescente. E outros males do Capitalismo ainda aparecem, como a opressão racista.

Mas há o início de um surto massivo de rebelião da classe trabalhadora e de todos os oprimidos. O movimento Black Lives Matter foi especialmente emocionante. As lutas de latinos, cidadãos, residentes e imigrantes foram heroicas. Há um crescente movimento ambientalista contra a mudança climática, incluindo as lutas dos nativos americanos. Mulheres jovens se recusam a aceitar a misoginia. As lutas por um salário mínimo de US$ 15 e pela organização dos trabalhadores da lanchonete já causam grande impacto. Embora eu não considere Bernie Sanders um socialista genuíno, é importante que um grande número de jovens tenha sido inspirado a apoiar alguém que se autodenomina um “socialista democrático”.

 

CONCLUSÃO

A meu ver, o trabalho dos radicais antifascistas não é apenas se opor a Trump, mas se opor ao Trumpismo. Ou seja, opor-se aos elementos de um movimento que poderia, em um futuro não tão distante, se reunir em um movimento fascista. E a maneira mais importante de fazer isso é construir uma alternativa radical. O centro está se desintegrando na política dos EUA – e na política de muitos países. O descontentamento com Clinton e sua campanha mostra que o status quo não oferece soluções. A política vai se polarizar em extrema esquerda e extrema direita. Os anarquistas revolucionários estão mais à esquerda, ou seja, os que mais se opõem ao Capitalismo, ao Estado e a todas as opressões. Trabalhando junto com outros grupos de esquerda onde pudermos, precisamos construir todos os elementos de oposição a este sistema vicioso e condenado.

 

2016


Fonte: https://theanarchistlibrary.org/library/wayne-price-is-trumpism-fascism
Traduzido por: Arthur Castro