Wayne Price. “Falácia de Landauer”

FALÁCIA DE LANDAUER

“Famosa Declaração” de Gustav Landauer

Wayne Price

 

Lendo a literatura anarquista contemporânea, encontro repetidamente alguma versão de uma citação do anarquista alemão Gustav Landauer (1870-1919). Um livro sobre anarquismo e educação cita a “famosa observação de Gustav Landauer” (Suissa, 2010; p. 136),

“O Estado não é algo que pode ser destruído por uma revolução, mas é uma condição, uma certa relação entre os seres humanos, um modo de comportamento humano; nós o destruímos ao contrair outras relações, ao nos comportarmos de maneira diferente” (citado acima).

O autor educacionista, na verdade, tirou essa citação de uma obra do conhecido escritor anarquista Colin Ward. Outra versão desta “famosa declaração de Gustav Landauer” (Gordon, 2008; p. 38) é citada no livro de Uri Gordon sobre a natureza do anarquismo,

“Pode-se jogar fora uma cadeira e destruir uma vidraça, mas … [apenas] os faladores ociosos … consideram o Estado como uma coisa ou como um fetiche que se pode quebrar para destruí-lo. O Estado é uma condição, uma certa relação entre os seres humanos, um modo de comportamento entre os homens [nota]; nós o destruímos ao contrair outras relações, ao nos comportarmos de maneira diferente uns com os outros … Nós somos o Estado e continuaremos a ser o Estado até que tenhamos criado as instituições que formam uma comunidade real …” (citado acima).

Em qualquer das versões, esta afirmação está fundamentalmente errada, argumentarei. Em primeiro lugar, vou parafrasear a declaração, para resumir o que acho que Landauer estava dizendo. Ele negava que o Estado fosse principalmente uma instituição, uma estrutura social. Em vez disso, ele afirma que nada mais é do que um conjunto de relacionamentos entre as pessoas. Ele chega à conclusão de que é errado tentar derrubar o Estado em uma revolução. Em vez disso, devemos desenvolver maneiras alternativas de nos relacionarmos, expressas em arranjos sociais alternativos criados no aqui-e-agora, para substituir gradualmente o Estado (embora as citações se refiram ao Estado, presumo que elas generalizem todas as formas de opressão, inclusive o Capitalismo).

Observe que não fui eu, mas Landauer, que contrapôs essas abordagens: ou vemos o Estado como uma coisa, uma instituição, ou o vemos como relações. Ou pretendemos uma revolução para destruir o Estado ou construímos relacionamentos alternativos aqui e agora. Essa era sua opinião e a daqueles que o citam – não a minha.

A citação de Landauer é admirada por aqueles anarquistas cuja estratégia básica é construir gradualmente instituições alternativas até que possam substituir pacificamente o Capitalismo e o Estado. Às vezes, isso é chamado de “novo anarquismo”, embora remeta às ideias de Proudhon, para não mencionar Landauer. Esta estratégia não revolucionária se opõe à supostamente “velha” estratégia do anarquismo revolucionário da luta de classes (ver Gordon, 2008; Price, 2009).

 

QUEM FOI GUSTAV LANDAUER?

Em sua época, Landauer foi um influente pensador e ativista anarquista. Erich Fromm referiu-se a ele como “um dos últimos grandes representantes do pensamento anarquista” (Fromm, 1955; p. 221). Jesse Cohen afirmou: “Gustav Landauer [deve] ser lembrado, junto com Bakunin e Kropotkin, como um dos pensadores mais brilhantes e originais do anarquismo” (citado em um anúncio de uma nova coleção de escritos de Landauer, em Suissa, 2010 ). Paul Avrich, o historiador do anarquismo, escreveu: “Ele também foi o anarquista alemão mais influente do século XX” (idem). Talvez a sinopse mais impressionante seja uma referência de 1893 em um arquivo da polícia alemã, “Landauer é o mais importante agitador do movimento radical e revolucionário em todo o país” (idem). Um grande elogio, de fato!

Durante sua carreira política, Landauer deixou de ser parte da oposição marxista em meio aos jovens do Partido Social-Democrata Alemão para adotar uma completa hostilidade ao marxismo e dedicação ao anarquismo (até ter visto a nova coleção de sua obra [Revolution and Other Writings: A Political Reader, Gabriel Kuhn ed. & Trans .; PM Press], estou trabalhando com Landauer; 1978 e Ward; 1965).

Em 1919, após a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, as revoluções varreram a Europa. Landauer foi convidado para servir no conselho central da região da Baviera, que tentava estabelecer uma república de conselhos de trabalhadores e camponeses. As forças militares contrarrevolucionárias, sob as ordens dos sociais-democratas, derrubaram a república do conselho. Landauer foi preso, baleado várias vezes e pisoteado até a morte, semelhante ao assassinato de Rosa Luxemburgo em Berlim. “Quando [Luxemburgo] e Gustav Landauer foram assassinados pelos soldados da contrarrevolução alemã, a tradição humanística de fé na [humanidade] foi morta com eles” (Fromm, 1955; p. 210).

 

PROGRAMA DE GUSTAV LANDAUER

Os escritos de Landauer expressam uma visão aguçada sobre muitos dos problemas do marxismo: seu determinismo teleológico, seu centralismo, seu cientificismo, sua atitude principalmente acrítica em relação à tecnologia. Ele estava totalmente correto ao dizer que o socialismo exige novas maneiras dos seres humanos se relacionarem uns com os outros e de se relacionarem com a natureza. Quase todos os anarquistas concordariam com esses pontos de vista.

No entanto, ele combinou o anarquismo comunista de Kropotkin com o institucionalismo alternativo gradualista do mutualismo de Proudhon. Ele defendeu abandonar as cidades (e a luta de classes nelas). Em vez disso, ele propôs construir fazendas coletivas. Elas se espalhariam até substituir o Capitalismo e o Estado.

“A aldeia socialista, com oficinas e fábricas aldeãs, com campos e prados e jardins (…) vocês, proletários das grandes cidades, acostumem-se a este pensamento (…) pois esse é o único começo do verdadeiro socialismo…” (citado em Ward, 1965; p. . 246). “Vamos nos unir para estabelecer famílias socialistas, aldeias socialistas, comunidades socialistas (…) Elas devem brilhar sobre o país, de modo que as massas de homens [nota] sejam dominadas pela inveja da nova bem-aventurança primitiva de satisfação…” (Landauer, 1978; p. 138).

Não há nada de errado em construir cooperativas ou aldeias coletivas. Mas esta não é uma estratégia para derrubar o Capitalismo e seu Estado. Sua implementação mais “bem-sucedida” foram os kibutzim israelenses, que foram ideologicamente inspirados em parte pelo amigo de Landauer, o filósofo judeu Martin Buber. Quaisquer que sejam suas virtudes, estes serviram como agentes de um novo Estado, capitalista e colonizador, não do anarquismo socialista.

Junto com suas críticas válidas ao marxismo, Landauer também condenou sua preocupação central para com a classe trabalhadora (ele da mesma forma condena os sindicalistas revolucionários). Afinal, ele queria que os trabalhadores deixassem as grandes cidades e indústrias onde se travava a luta de classes e (como diz a “famosa declaração”) “preparassem outras relações” construindo fazendas agroindustriais coletivas no campo. Isso significava que eles deveriam deixar de ser trabalhadores industriais, proletários.

Ele apoiava sindicatos apenas se eles trabalhassem com cooperativas de consumidores, usando seu dinheiro para comprar terras para aldeias industriais-agrícolas coletivas. Esta não era uma orientação de classe, já que ele também esperava que “os homens ricos [se juntassem] completamente a nós ou pelo menos contribuíssem para a nossa causa” (Landauer, 1978; p. 140).

Infelizmente, seus escritos estão cheios de insultos vis e caricaturas degradantes contra a classe trabalhadora. “Os proletários são os ladrões incultos nascidos (…) A mentalidade inculta do proletário é, incidentemente, uma das razões pelas quais o marxismo, a incultura sistematizada, foi tão bem recebido pelo proletariado (…) Os trabalhadores não são uma classe revolucionária, mas um bando de pobres desgraçados que devem viver e morrer sob o Capitalismo (…) Se a revolução viesse hoje, nenhum estrato da população teria menos ideia do que fazer do que nossos proletários industriais” (Landauer, 1978; pp. 69, 86, 134).

É irônico que Landauer tenha morrido, não defendendo sua fantasia de aldeias coletivas, mas como parte de uma verdadeira revolução da classe trabalhadora. Quaisquer que sejam suas fraquezas, ele morreu bravamente pela causa do anarquismo proletário.

 

A FAMOSA DECLARAÇÃO

Voltando agora à “famosa observação” de Landauer: dizer que o Estado é apenas uma relação entre as pessoas, é como dizer que as Cataratas do Niágara são apenas gotas de água fluindo para baixo. É verdade, mas perde o ponto central. Todas as instituições (estruturas sociais) são compostas por humanos individuais. Se uma bomba de nêutrons matasse todas as pessoas, mas deixasse os edifícios em que o governo se reúne, não haveria mais Estado. Mas isso não significa que, como Margaret Thatcher disse uma vez, não haja sociedade, apenas indivíduos. Quando muitas pessoas agem em padrões consistentes, repetidos e estáveis, isso é uma instituição (por “ação”, incluo tanto o comportamento aberto quanto o pensamento e crença internos). E tais instituições resistem à mudança. O Estado nacional dos EUA sobreviveu a todos aqueles que o estabeleceram e os que o mantiveram por mais de 200 anos; os indivíduos mudam, mas o Estado continua.

Sem dúvida, se dezenas de milhões de indivíduos decidissem viver de uma maneira diferente, não-estatal, isso desafiaria o Estado. Mas e se, ao mesmo tempo, outros milhões decidissem continuar vivendo de forma estatista? E se eles tiverem interesses próprios em viver como pessoas ricas e poderosas, e isso fizer parte de sua própria concepção? O estatismo não será estabelecido por quantas pessoas escolheram viver desta ou daquela maneira. Será necessário um confronto, um conflito, uma luta. As classes dominantes raramente permitem que aqueles que exploram escolham viver de maneira diferente; usam a força para manter suas instituições, especialmente o Estado – e os oprimidos são forçados ou usar a violência para defender suas escolhas ou se render aos senhores.

Até Landauer observa que sua estratégia de aldeias coletivas e cooperativas enfrentará resistência do Estado. “O Estado (…) colocará os maiores e menores obstáculos no caminho dos iniciantes. Nós sabemos disso” (Landauer, 1978; p. 141). Qual é a sua resposta para isso? “Vamos cruzar essa ponte quando chegarmos lá!” (idem). Isso dificilmente é adequado.

O anarquismo socialista precisará de um movimento de massa da classe trabalhadora e de todos os oprimidos, determinados a viver de forma diferente, para nós e para nossos filhos. Mas não terá sucesso se o movimento se cegar aos obstáculos, se basear em fantasias e se recusar a se preparar para uma eventual revolução.

REFERÊNCIAS

Fromm, Erich (1955). The Sane Society. Greenwich CT: Fawcett.

Gordon, Uri (2008). Anarchy Alive! Anti-Authoritarian Politics from Practice to Theory. Ann Arbor MI: Pluto Press.

Landauer, Gustav (1978). For Socialism. (D. J. Parent, trans.). St. Louis: Telos Press.

Price, Wayne (2009). “The two main trends in anarchism.” http://www.anarkismo.net/article/13536

Suissa, Judith (2010). Anarchism and Education; A Philosophical Perspective. Oakland CA: PM Press.

Ward, Colin (1965). “Gustav Landauer.” In Anarchy 54 (vol. 5, no. 8). Pp. 244-254.

28 de Julho de 2011

Fonte: https://theanarchistlibrary.org/library/wayne-price-landauer-s-fallacy
Traduzido por: Arthur Castro