Murray Bookchin. “Por um Novo Municipalismo”

POR UM NOVO MUNICIPALISMO

Murray Bookchin

Dada a crescente centralização do Estado e a depressão de todas as formas sociais, o problema do desenvolvimento de formas populares de organização social tornou-se a responsa- bilidade histórica de um movimento anarquista importante. O mito do “Estado mínimo ” proposto pelos neomarxistas, pelos descentralizadores da “Nova Era” e pelos “libertários” de di- reita – por bem intencionadas que sejam as suas noções – é, em última instância, uma justificação do Estado enquanto tal. Dentro do conceito da crise presente, qualquer Estado mínimo torna-se uma ideologia ingénua para o único tipo de Estado que é possível em uma sociedade cibernética de grandes empresas – de fato, um Estado máximo. Faz parte da própria dialética da presente situação que qualquer Estado não possa ser mais “mínimo” , tal como uma bomba de hidrogénio não pode se transformar em um instrumento pacífico. Discutir o “tamanho” de um Estado – as suas dimensões, grau de controle e funções – reflete a mesma sabedoria que é inerente às discussões sobre o tamanho da arma que só pode levar ao extermínio da sociedade e da biosfera. O grau das discussões acerca do Estado, focando os seus objetivos e autoridade, permanece em um nível de discurso que é tão racional como as discussões sobre se o nosso arsenal nuclear conterá armas para destruir o mundo, cinco, 10 ou 50 vezes. Uma vez chega, quer para os arsenais nucleares, quer para o Estado.

Se uma oposição descentralizadora ao Estado, à arregimen- tação e militarização da sociedade quer ser de fato significativa, o termo “descentralização” deve então adquirir forma, estrutu- ra, substância e coerência. Expressões como “escala humana” e “holismo” tornam-se clichés enfraquecidos quando não são compreendidas em termos da sua plena lógica revolucionária, isto é, como reconstrução revolucionária de todas as relações e instituições sociais. A criação de uma economia inteiramente nova, baseada não só na “democracia no local de trabalho” mas na esteticização das capacidades produtivas humanas; a abolição da hierarquia e dominação em todas as esferas da vida pessoal e social; a reintegração de todas as comunidades sociais e natu- rais em um ecossistema comum. Este projeto implica um corte total com a sociedade de mercado, as tecnologias dominantes, o estatismo, as sensibilidades patricêntricas e prometéicas para com os humanos e a natureza, que foram absorvidas e realçadas pela sociedade burguesa. Cada passo em falso nesta direção, é uma falta grosseira em relação ao projeto e à sua essência. Ele admitiria inevitavelmente uma traição total, um apoio ideológico à centralização disfarçada em “descentralização”. Ou o projeto é levado à prática até os seus mais radicais fins, ou ele entrará em conflito consigo próprio e com os seus objetivos originais.

Qual é o lugar autêntico deste projeto? Não é certamente o local de trabalho atual – a fábrica e o escritório – o qual tem que ser, ele próprio, reconstruído fundamentalmente, partindo do atual campo (hierárquico e tecnologicamente obsoleto) de mobilização da mão-de-obra, para um mundo criativo que se combine ricamente com a esfera pública e que transcenda o mero conflito de interesses económicos. Neste sentido, o sindicalismo e o comunismo conselhista, ao perpetuarem o mito do local de trabalho como esfera revolucionária, tornam-se uma forma tosca de marxismo sem as suas manifestas características autoritárias. Tampouco pede a localização deste projeto situar-se na comunidade isolada ou na cooperativa, a despeito das suas inestimáveis qualidades como escola para aprendizagem dos conhecimentos e resolução dos problemas de ação direta, autogestão e interação 32 social. Nenhuma cooperativa de alimentação substituirá jamais as grandes cadeias de produtos alimentares, e nenhuma fazenda de agricultura biológica substituirá o agronegócio sem que haja mudanças fundamentais na sociedade em geral. Como núcleos em uma sociedade de mercado invasora, elas mal podem esperar enfrentar significativamente uma economia sólida e politizada, baseada em ótimos recursos materiais e, se necessário, na coerção física. Elas podem ser focos de resistência indispensáveis para enfrentar os novos desafios com que hoje se confronta uma oposição revolucionária. Mas a noção proudhoniana de que elas seriam o manancial material de uma nova sociedade que iria gradualmente substituir a velha é totalmente mítica – ou pior, obscurantista. Daí a sutil corrupção da visão do Stanford Research Institute [1] de uma dupla sociedade: uma, pequena e autocomplacente, que viverá pelos cânones da “simplicidade voluntária” ; a outra, sólida e esmagadora em números, que viverá pelas necessidades engendradas pela produção de massa e por uma sociedade de massa. Em última análise, esta imagem serve para desviar qualquer conflito para a esfera pessoal, com o argumento da confrontação com as mídias massificadas que esmagam o espírito de resistência da grande maioria da sociedade.

A resistência e a recolonização da sociedade devem surgir da lógica de um conflito baseado claramente entre a sociedade e o Estado centralizado, e não de esforços singulares que estão incorporados em esforços comunitários e pessoais. Todas as revoluções têm sido isso mesmo: um conflito entre a sociedade e o Estado. E, tal como atualmente o Estado centralizado significa o Estado nacional, também a sociedade de hoje está sendo cada vez mais representada pela comunidade local – o distrito, o povoado e o município. A exigência de um “controle local” deixou de significar paroquialismo e insularidade, com a estreiteza de visão que despertou os receios de Marx [2] . No terreno gerado pelo crescimento de uma economia centralizada e cartelizada, o grito para a descoberta da comunidade, da autonomia, de uma relativa auto-suficiência, autoconfiança e democracia direta, tornou-se o último reduto de resistência social e crescente autoridade do Estado. A esmagadora ênfase que a mídia tem colocado na autonomia local e no municipalismo militante como refúgios para um paroquialismo de classe média – muitas vezes com restrições exclusivamente racistas e económicas – esconde a latente ofensiva radical que pode dar uma nova vitalidade às aldeias, subúrbios e cidades, contra o Estado nacional. Ainda que escolhamos termos como “socialismo” e “anarquismo” para marcar o contraste com as conotações paroquiais de termos como “municipalismo”, convém não esquecer que mesmo “socialismo” e “anarquismo” têm o seu lado negativo, se realçarmos os aspectos autoritários do primeiro e o fracasso crónico do último para se consolidar organizacionalmente na maior parte dos países do mundo. A verdade é, finalmente, uma linha muito fina que pode facilmente serpentear ao longo do seu curso. Neste aspecto, não existem regras, dogmas e tradições que substituam a consciência.

Deste modo, o município pode facilmente tornar-se o ponto de partida para uma constelação de instituições sociais larga- mente baseadas na democracia direta, verdadeiramente popular e à escala humana, que, pela sua própria lógica, se encontrem em oposição aguda às crescentemente invasoras instituições políticas. Isto deve ser claro: o potencial de um radicalismo libertário é inerente ao municipalismo. Este constitui a base para relações sociais diretas, democracia frontal e a intervenção pessoal do indivíduo, para que os povoados, as comunidades e cooperativas convirjam na formação de uma nova esfera pública. Liberto das suas próprias instituições políticas, tais como a sua estrutura presidencial, a burocracia civil e o seu monopólio organizado da violência, ele conserva ainda os seus elementos históricos para a reconstrução (e ulterior superação) da polis, da comuna livre medieval, do sistema de assembleia da Nova Inglaterra, das seções parisienses, da estrutura descentralizada cantonal e da Comuna de Paris [3].

É certo que, em si, o município é tão inútil como força social como o são a chácara comunitária e a cooperativa. Além disso, desde que ele preserve as instituições políticas do Estado, permanece não só como uma entidade social ineficaz, mas também um Estado em miniatura. Mas a partir do momento em que os municípios reúnem-se em federações para formar uma nova rede social; que interpretem o controle local com o significado de assembleias populares livres; que a autoconfiança signifique a coletivização dos recursos; e que, finalmente, a coordenação administrativa dos seus interesses comuns seja feita por delegados – não por “representantes” – que são livremente escolhidos e mandatados pelas suas assembleias, sujeitos à rotação, revogáveis e as suas atividades severamente limitadas à administração das políticas sempre decididas nas assembleias populares – a partir deste momento os municípios deixam de ser instituições políticas ou estatais em qualquer sentido do termo.

A confederação destes municípios – uma comuna de comunas – é o único movimento social anarquista de ampla base que pode ser visionado hoje, aquele que poderá lançar um movimento verdadeiramente popular que produzirá a abolição do Estado. E o único movimento que pode responder às crescentes exigências de todos os setores dominados da sociedade para dar poder e propor pragmaticamente a reconstrução de uma sociedade comunista libertária nos termos viscerais da nossa problemática social atual – a recuperação de uma personalidade poderosa, de uma esfera pública autêntica e de um conceito ativo e participativo de cidadania. O anarquismo inspirou desde há várias gerações a visão de uma confederação de municipalidades, em parte desde os escritos de Proudhon [4], e mais notavelmente na obra de Kropotkin. Tragicamente, os teóricos anarquistas do passado foram demasiado sensíveis às armadilhas políticas dos municípios do seu tempo para darem a necessária atenção à anatomia social da municipalidade que jaz por debaixo da sua aparente fachada estatal.

Historicamente, o próprio município foi sempre um campo de batalha entre a sociedade e o Estado. De fato, ele antecede historicamente o Estado e tem permanecido sempre em conflito com ele. Tem sido um campo de batalha porque o Estado, até data relativamente recente, nunca reclamou por inteiro o município, devido à sua vida socialmente rica – famílias, corporações, a igreja, as freguesias, as sociedades locais, os bairros e as assembleias populares. Estas estruturas ricas de núcleos, apesar das suas divisões internas, têm sido espantosamente impenetráveis à institucionalização política. Ironicamente, a tensão entre sociedade e Estado em nível municipal nunca atingiu a situação grave de hoje porque as forças internas da cidade e dos subúrbios possuíam os meios materiais, culturais e espirituais para resistir às tendências invasoras das forças políticas. A vida municipal – ricamente entrelaçada por redes familiares, compromissos locais, organizações profissionais, sociedades populares e até estabelecimentos de convívio, como cafés – proporcionava um refúgio humano contra as forças burocráticas e homogeneizadoras do aparelho estatal. Hoje, o Estado, particularmente o da forma de economia de mercado, ameaça destruir este refúgio e o municipalismo tornou-se o terreno mais significativo da luta contra o Estado em um terreno não-político. O próprio conceito de cidadania, e não só o de autonomia cívica, está em jogo neste conflito.

É, neste momento, crucial para qualquer movimento anarquista que procure ser socialmente relevante perante a natureza única da crise, reconhecer o significado e a importância do terreno cívico – para explorar, desenvolver e ajudar a reconstruir o seu fundamento social. A política urbana não está predestinada a tornar-se política de Estado. Para um anarquista, tornar-se Ministro da Saúde ou Ministro da Justiça em um governo republicano é imperdoável. Mas para um anarquista, ajudar a organizar uma assembleia do povoado, avançar sua consciência em uma linha libertária, apresentar reivindicações sobre a revogabilidade e a rotatividade dos delegados escolhidos pela assembleia, fazer distinções claras entre formulações de políticas e coordenação administrativa, recusar o burocratismo civil em todas as suas formas, educar a comunidade para o coletivismo e a ajuda mútua e, finalmente, encorajar relações confederais entre assembleias populares e municipalidade e entre municipalidades, em desafio aberto ao Estado nacional – este programa constitui uma “política” anarquista que, na sua lógica própria, contém a negação da política. Para os anarquistas, candidatar- se às eleições… sim, usemos a palavra abertamente – tendo em vista a reformulação das cartas cívicas das cidades e vilas na linha deste programa, não é diferente, em princípio, do que candidatar-se nos sindicatos e locais de trabalho com vista a criar estruturas anarco-sindicalistas. A diferença de situações não é sobre o ponto dos anarquistas se candidatarem a “eleições” ou se envolverem na política. A diferença real está em se o terreno do seu “eleitoralismo” e da sua “política” se situa na esfera estatal ou na esfera social. O argumento sindicalista tradicional de que é perfeitamente válido os libertários apresentarem-se às eleições no local de trabalho e nos sindicatos, assenta no pressuposto duvidoso de que este terreno está fora do aparelho de Estado e permanece uma arena revolucionária. Perante a crescente interrogação posta pelas realidades, eles mantêm a afirmação de que o local de trabalho e os sindicatos, como organizações de classe, não são nem instituições burguesas nem estatais. Encerrar a discussão sobre estas propostas com o argumento de que as atividades cívicas são uma capitulação perante a política burguesa é ignorar realidades muito fortes sobre a própria esfera cívica – ou, para usar termos mais tradicionalmente anarquistas, sobre a esfera comunitária. Como resultado disto, aparências como “eleições”, “deputados”, e “coordenação” são tirados do contexto no qual ganham todo o sentido e conteúdo. Tornam-se termos autónomos e flutuantes que determinam uma política sem discernimento nem a matéria da realidade.

Isto deve ser muito claro: nos Estados Unidos, as fábricas estão virtualmente mudas, enquanto que as cidades, particular- mente os guetos e os subúrbios não estão. Hoje, os trabalhadores americanos podem ser atingidos mais rápida e receptivamente como vizinhos e cidadãos do que como trabalhadores assalariados das fábricas – uma situação que envolve consequências muito graves em uma discussão sobre a classe operária americana. Se os grupos anarquistas dos Estados Unidos – apoiando-se nas suas tradições do século XIX, no seu ligeiro antiestatismo e no seu economicismo – ignorarem o conflito histórico entre as periferias sociais chamadas vilas, freguesias e cidades, por um lado, e o Estado, por outro, eles ganharão as suas bandeiras negras, não como bandeiras de protesto, mas como mortalhas. A demarcação entre estatismo e anarquismo deve ser sempre clara, mas também o deve ser a demarcação entre sociedade e Estado, ou então não conheceremos nunca o tempo em que a batalha terá lugar. Na crise histórica com que nos confrontamos, que a própria vida pública ameaça fazer desaparecer, a recriação de uma esfera pública – à escala humana, diretamente democrática, e composta de cidadãos ativos – é talvez a responsabilidade mais premente do nosso tempo. Porque sem essa esfera pública, que deve ter tangibilidade cívica e substância se quiser ser mais do que simples metáfora, as próprias condições e substância para o protesto teriam desaparecido.

Postscriptum

 

O último número de Comment terminava com uma discussão sobre o “novo municipalismo” como projeto focal do anarquismo para os anos futuros. Parece apropriada uma discussão sobre o tema “anarquismo: passado e presente”, tratando, embora levemente, os problemas que este projeto levanta e a filosofia libertária que lhe serve de base.

Existem dois campos que o anarquismo reclamou historicamente para a sua intervenção: o local de trabalho e a comunidade. Tanto na oficina artesanal como na povoação, na fábrica como no conselho, a teoria anarquista sugere, quando não afirma explicitamente, que ambos estes campos são mais sociais do que estatais. O local de trabalho, particularmente a fábrica industrial, encontrou a sua apoteose nos sindicatos anarco-sindicalistas e nos diversos movimentos para a “democracia no local de trabalho”. Se este campo pode olhar-se hoje como “necessariamente” ou “potencialmente” revolucionário, é uma questão em aberto que requer uma discussão aparte e é agora assunto de largo debate, quer nos meios marxistas, quer nos meios anarquistas. Que líderes anarco-sindicalistas possam ter ocupado altos cargos estatais não é argumento que invalide a interpretação sindicalista das ideias anarquistas, tal como não o é o fato de que os mutualistas e possibilistas do século XI X – que privilegiaram a atividade municipal – possam ter sido atraídos para a política parlamentar. Será que o que é realmente importante é o significado por nós atribuído ao novo municipalismo? Os anarquistas tradicionais tinham da vida municipal a visão de um parlamentarismo local, cujos fins últimos estavam na política eleitoral. Será assim? Também se poderá argumentar que o sindicalismo, de qualquer tipo, envolve uma adaptação à hierarquia industrial e à racionalização, e conduz em última instância, a uma política de sindicatos burocratiza- dos – um argumento que tem mais história atrás de si, do que a atividade municipal. Nós devemos ser muito honestos conosco mesmos, neste período crucial da história. Se um movimento anarquista nos Estados Unidos não se tornar uma coligação livre de indivíduos, comunidades, cooperativas e grupos de afinidade – vitais como são a própria natureza e integridade de um tal movimento – ele não poderá implantar-se em uma larga base de desenvolvimento social. E tal desenvolvimento compreende a esmagadora realidade de que a grande maioria dos americanos vive em uma ou noutra forma de fixação urbana. Convém realçar que, se um novo municipalismo apenas significar uma política liberal, social-democrática ou mesmo “radical”, confinada à melhoria dos serviços para os pobres, idosos e desprotegidos, então ele será um remendo do reformismo paroquial que, finalmente, fornecerá uma maquiagem ao sistema, em vez de desafiá-lo. Mas se um novo municipalismo for guiado por um programa radicalmente diferente, ele pode tornar-se em uma visão revolucionária praticável e muito necessária que engloba respostas ecológicas, feministas, étnicas, homossexuais e cívicas libertárias – com o caráter fundamental de serem respostas cívicas, ou, mais precisamente, comunitárias.

Os requisitos minimamente indispensáveis para a realização desta visão são: primeiro, a formação de um movimento anarquista de elevado comprometimento e altamente consciente. Sem o desenvolvimento desse movimento, antes de tudo, o municipalismo degenerará inevitavelmente em reformismo e parlamentarismo; segundo, o encorajamento e desenvolvimento de assembleias populares em áreas urbanas e conselhos; por último – e só então – poderia esta visão ser corporizada em um movimento consciente largamente apoiado, uma Confederação de Municípios, que interligasse aquelas assembleias com comunidades urbanas mais vastas e, por fim, entre municipalidades que contestassem o Estado e o governo nacionais, consciente e radicalmente. As suas reivindicações: a reformulação das cartas cívicas de todas as cidades e vilas, para eleger (com direito à revogação e com rotatividade) os deputados conselheiros a partir das assembleias populares, encarregando-os de funções mais administrativas do que políticas. Estas novas cartas, estando em franca contradição com a “Constituição” Federal, dariam às municipalidades o direito de municipalizar a indústria, os solos e o comércio; de determinar as suas necessidades sociais e de satisfazê-las; e finalmente de suplantar as instituições nacionais do Estado pelas instituições confederais das comunidades locais.

É nesta base que um novo anarquismo pode e deve se fundamentar para adquirir a relevância, a influência e o potencial revolucionário capaz de enfrentar a crise que se lhe deparará. Não perceber que o anarquismo pode orientar a maré de um ódio popular irresistível (não se pode descrevê-lo de outra maneira) contra a centralização, burocratização e interferência governamental em todos os aspectos da vida; não perceber este fato determinante, seria uma incrível miopia e condenaria o anarquismo ao destino de uma mera tendência periférica na orla de uma monumental tempestade social.

Em 19 de abril de 1871, a Comuna de Paris proclamou no seu Programa Oficial ao Povo da França: “Exigimos a total autonomia da Comuna, extensiva a todo o território da França, assegurando a cada um a plenitude dos seus direitos, e a todos os franceses a livre expressão das suas faculdades como homem, como cidadão e como trabalhador”. Sabendo que estas proclamações foram feitas há um século, podemos pedir menos do que isto?

A Ideia, Lisboa, n° 24-25, abril de 1982


[1] O Stanford Research Institute, atualmente chamado SRI International, é um dos maiores institutos de pesquisa privados do mundo. Fundado em 1946 em Menly Park, estado da Califórnia, pela Stanford University, sua missão c, nas palavras do próprio instituto, “a descoberta e aplicação da ciência e da tecnologia para o conhecimento, comércio, prosperidade e paz.”. (Não são especificados os eventuais beneficiários dessa “prosperidade e paz”.) O SRI foi responsável por um grande número de desenvolvimentos na área de alta tecnologia, incluindo informática, eletrônica, armamentos e, mais recentemente, biotecnologia. Para dar uma ideia do impacto desses desenvolvimentos para o avanço da civilização industrial, é suficiente mencionar que, apenas no campo da informática, pesquisadores do SRI estiveram diretamente envolvidos, durante a década de 60, na criação das interfaces gráficas de usuário, do mouse e da Internet – três tecnologias hoje ubíquas (N. do R.)

[2] Karl Heinrich Marx (1818-1883), economista, filósofo, historiador, teórico político e jornalista alemão, criador do materialismo histórico e fundador da moderna doutrina comunista, cuja obra mais famosa foi O Capital (cujo primeiro volume foi publicado em 1867), apresentando uma extensa análise dos fundamentos do modo de produção e da sociedade capitalista. (N. do R.)

[3] A Comuna de Paris, fundada na capital francesa em 1871 por ocasião da resistência popular ante à invasão alemã durante a Guerra Franco-Prussiana, foi a experiência de gestão operária e socialista da história. A experiência da Comuna durou apenas 40 dias, porém nesse período introduziu mais mudanças do que todos os governos nos dois séculos anteriores, como a socialização da moradia, redução da jornada de trabalho, abolição do exército regular, secularização da educação, igualdade de direitos para homens e mulheres, implantação da democracia direta e autogestão de fábricas e do trabalho artístico. A Comuna foi esmagada com extrema violência pelo governo francês, cujas tropas executaram cerca de 50.000 pessoas, durante a repressão ao movimento comunal. (N. do R.)

[4] Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), célebre anarquista francês, fundador do anarquismo clássico. Ficou famoso por introduzir conceitos como “A propriedade é um roubo” e “A anarquia é a ordem”, bem como o banco popular e a cooperativa de trabalhadores. (N. do R.)