Murray Bookchin. “Autogestão e Tecnologias Alternativas”

AUTOGESTÃO E TECNOLOGIAS ALTERNATIVAS

Murray Bookchin

A autogestão, nos seus mais variados e ricos significados, esteve sempre estreitamente associada no desenvolvimento das técnicas, ainda que esta associação nem sempre tenha merecido a atenção que seria de desejar. No entanto, ao pôr em relação estes dois aspectos, não quero, de modo nenhum, comprometer-me em uma relação simplificadora, isto é, uma relação que reduza a complexidade dos problemas técnicos a um determinismo tecnológico. Os homens são seres quase inteiramente sociais. Eles desenvolvem um conjunto de valores, de instituições e de relações culturais que permitem, ou não, o desenvolvimento de técnicas. E preciso, creio, insistir de novo no fato de certas invenções técnicas fundamentais ao desenvolvimento do capitalismo, como por exemplo a máquina a vapor, serem já conhecidas dos gregos há mais de 2000 anos. Com efeito, o fato de uma tal fonte de energia não ter sido, naquela altura, usada senão como simples brinquedo testemunha largamente a importância que tiveram os valores éticos e culturais da Antiguidade sobre a evolução das técnicas em geral e, em particular, sobre todas as épocas não submetidas a uma lógica de mercado.

Mas, de uma outra forma, seria também de um simplismo inaceitável negar as relações das técnicas existentes, em determinado período histórico, com o modo como a humanidade define e interpreta a ideia de autogestão. E uma tal afirmação é particularmente evidente nos dias de hoje, quando a autogestão é concebida principalmente em termos económicos, tais como “controle operário”, “democracia industrial”, “participação dos trabalhadores”, isto é, nos termos dos velhos anarco-sindicalistas, como uma espécie de coletivização económica. Mais tarde discutiremos como tal interpretação da autogestão, compreendida apenas em termos económicos, pôde ocultar e diferir de outras interpretações da palavra, nomeadamente aquelas que se prendiam com as ideias de federalismo municipal da sociedade medieval, das seções revolucionárias de 1793 e da Comuna de Paris. Mas, agora, é cada vez mais evidente que hoje, quando falamos de autogestão, falamos de uma forma ou de outra, de sindicalismo. Falamos de uma formação económica que se relaciona com a organização do trabalho, o emprego dos materiais e das máquinas, bem como com a repartição social dos recursos materiais. Em suma, nós falamos das técnicas ou da tecnologia.

Mas, a partir do momento em que questionamos os problemas técnicos como importantes, nós abrimos caminho a um número considerável de paradoxos, que não podem ser resolvidos pelo simples efeito da retórica ou da fórmula moral mais conhecida. Se o papel da técnica, na formação do pensamento e da sociedade, tem sido, por vezes, exagerado por autores diversos, nas suas opiniões sociais, como Marshall McLuhan [1] ou Jacques Ellul [2], não podemos contudo negar a sua influência, e até a sua indispensável contribuição, na criação das instituições sociais e das atitudes culturais. O sentido altamente economicista que a palavra autogestão hoje evoca, não é senão, por si mesmo, uma prova gritante do grau de apropriação que as palavras sofrem na sociedade industrial [3]. O termo “auto”, como prefixo, e a palavra “gestão” tornam-se, no plano das ideias e dos sentidos, opostas uma à outra. A ideia de gestão tende a apagar a ideia de autonomia. Pela influência dos valores tecnocráticos sobre o pensamento, a autogestão, conceito fundamental a uma administração libertária da vida e da sociedade, foi preterida a favor de uma estratégia de gestão eficaz e rentável. Deste modo, a ideia de autogestão é cada vez mais levada em conta, mesmo pelos sindicalistas mais decididos, não por motivos de autonomia pessoal, mas por razões de funcionalidade económica. Somos impelidos a pensar que “o pequeno é bonito” [4], não porque assim possamos obter uma sociedade à escala humana, que cada um possa controlar, mas porque dessa forma economizaremos energia. Autonomia e autogestão são encaradas como componentes da lógica industrial, isto é, atitudes mais aptas a resolverem problemas económicos e técnicos do que problemas morais e sociais. E a própria sociedade que nega a individualidade do homem, que estabelece, afinal, os termos que devem ser utilizados por aqueles mesmos que pretendem modificá-la em um sentido diferente e libertário. Ela apropria-se, de forma decisiva, da sensibilidade dos seus oponentes mais decididos, estabelecendo os parâmetros das suas críticas e opiniões. Em suma, ela “industrializa” a sua própria oposição possível.

Também a autogestão, que recusa pôr em causa as suas bases de atuação técnica, não é, por outro lado, menos paradoxal. Será, com efeito, possível acreditar que nas empresas nacionalizadas, ou sob controle operário, estes terão mudado de maneira decisiva o seu comportamento social, cultural e intelectual? Será que uma fábrica, uma mina ou uma grande exploração agrícola se tornam espaços de liberdade e de livre criatividade, só pelo simples fato de serem coletivos operários que os gerenciem? Será que a simples eliminação da exploração económica traz inevitavelmente consigo o fim da dominação social e da alienação cultural? Superando o poder de classe, superaremos o poder da sua hierarquia? Isto é, para falar de modo mais preciso e sucinto, poderão as técnicas atuais responder de forma adequada à modificação e à transformação desejada?

É justamente a partir daqui que noções como “controle operário”, “democracia industrial”, “participação económica” se mostram, por si só, claramente insuficientes.

Não há argumentos mais claros e precisos para opor às ideias funcionais de organização económica que o fato, cada vez mais claro, da natureza autoritária da atual tecnologia. A ideia de uma neutralidade da tecnologia atual, uma neutralidade essencialmente social e política, é, no entanto, um postulado de base, aceito por um conjunto muito vasto de ideólogos e pensadores. Admite-se como claro o ponto de vista funcional que considera a técnica como sendo apenas o meio inanimado, sem vida, do metabolismo entre o homem e a natureza. O fato de a fábrica ser, por excelência, o lugar privilegiado da autoridade não impede que isso seja tido como uma espécie de fato natural, isto é, um fato que está para além de todas as considerações éticas e sociais.

Infelizmente, quando as considerações éticas sobre a tecnologia são isoladas, e não levam em conta um determinado contexto histórico ou social, o ponto de vista funcional tende igualmente a sobrepor-se e a prevalecer, exatamente pelas mesmas razões acima apresentadas, pois também ele pressupõe que a tecnologia não é senão uma questão de concepção, um dado que é, ou não, funcional. Só muito recentemente vimos emergir um tipo novo de interrogação, ligada à instalação de centrais nucleares, que se recusa a aceitar a tecnologia como um “dado”, sem outras consequências. A noção de que o “átomo pacífico” é intrinsecamente um “átomo agressivo” divulgou-se largamente depois do acidente na central de Three Mile Island [5], em Harrisburg. Aquilo que foi mais significativo neste acidente foi, talvez, o fato dos antinucleares terem conseguido interessar as pessoas pelas novas tecnologias e pelas energias renováveis, que são ecologicamente mais sãs e implicitamente mais humanas. A distinção entre “boas” e “más ” técnicas, isto é, uma avaliação ética do desenvolvimento técnico, pôde então fazer-se com uma acuidade desconhecida desde a primeira Revolução Industrial.

Autonomia e Educação

Aquilo que me proponho defender aqui é a necessidade que os defensores da autogestão têm em lidar com a tecnologia de uma forma muito idêntica, e em um contexto ético semelhante, àquela utilizada pelos grupos antinucleares na sua relação com os recursos energéticos. Eu proponho que perguntemos se a fábrica, a mina ou a grande exploração agrícola podem ser legitimamente consideradas como espaço aceitável para uma concepção libertária de autogestão, e se assim for, quais são então as alternativas possíveis, as alternativas que justifiquem, em um campo ético e social, essa mesma concepção libertária. Esta tarefa torna-se cada vez mais necessária, na medida em que o conceito de “autogestão” é cada vez mais encarado como um problema técnico de administração industrial. O “controle operário” pode mesmo tornar-se uma moda de gestão, sem qualquer implicação social relevante, enquanto os operários consentirem em serem encarados apenas como operários. As suas decisões podem até ser consideradas e levadas em conta, já que, também elas, podem contribuir para a racionalização técnica das operações industriais.

E, no entanto, se a autogestão não se tornar uma outra coisa, uma coisa que seja um pouco mais do que gerir as formas técnicas existentes, se o trabalho não for transformado em uma atividade livre e criativa, então a autogestão é apenas um falso desafio. Deste modo, é o próprio conceito de autogestão que necessita ser reexaminado. Nós faríamos bem em examinar algumas noções construídas com base na autogestão, particularmente na relação que mantêm com o desenvolvimento técnico, antes de a considerarmos como uma ideia social libertadora. A noção inglesa de selfhood [6] tem a sua origem na ideia helénica de autonomia, isto é, na ideia de “autogoverno”. O fato de o termo autonomia apenas significar hoje a simples independência, em termos políticos, deve-se a essa forma de reducionismo, própria da nossa sociedade, e de que anteriormente já falamos. A autonomia helénica estava intimamente relacionada com a ideia de governo social, e com a capacidade que o indivíduo tinha em participar diretamente no governo da sociedade em que vivia, antes mesmo de se ocupar das suas atividades económicas. Com efeito, o próprio termo “economia” significava a gestão da casa – o oikos – e não da sociedade, e era por isso tida como uma atividade inferior, ainda que necessária, à gestão e à participação na comunidade e na polis. A noção de selfhood era então, me parece, associada mais ao poder do indivíduo no seio da comunidade, do que propriamente à gestão da existência material. No entanto, a possibilidade de exercer um poder social, e dessa forma adquirir uma individualidade (um eu), pressupunha uma certa forma de lazer e uma liberdade material, adquiridas através da boa gestão do meio. Mas asseguradas essas condições básicas, a noção de selfhood exigia mais, e estas exigências podem hoje parecer, ao homem da nossa época, tremendamente significativas. Para começar, a noção de selfhood implicava, desde o início, o reconhecimento da competência do indivíduo. A autonomia, isto é, o autogoverno, teria sido uma palavra vazia se o conjunto de indivíduos que constituíam a polis grega, e notadamente a democracia ateniense, não fossem eles próprios seres capazes de, por si mesmos, assegurarem a formidável responsabilidade do governo. No fundo, a democracia na cidade estava baseada em um princípio básico de que qualquer cidadão podia exercer o poder, visto que possuía uma competência pessoal e uma lealdade indiscutível. A educação política do cidadão era, por conseguinte, uma educação da competência pessoal, da inteligência e, sobretudo, da retidão cívica e moral. A chamada ecclesia [7] ateniense, espécie de assembleia popular de cidadãos, que se reunia pelo menos 40 vezes por ano, era então o terreno privilegiado para testar essa capacidade educativa. Mas a ágora [8], praça pública onde os atenienses tratavam de todos os seus problemas, é que era, no fundo, a sua verdadeira escola. Com efeito, parece que a noção de selfhood teve a sua primeira e mais remota origem em uma política da personalidade, e não em um processo de produção material [9]. E quase um absurdo, de natureza etimológica, pretender dissociar o prefixo “auto” da capacidade de exercer um controle pessoal sobre a vida social. Sem o seu significado ético, as suas implicações de natureza pessoal moral, a noção de selfhood arrisca dissolver-se em uma espécie de individualismo, vazio e sem sentido, que lembra, por vezes, esse egoísmo da personalidade humana que emerge à superfície da sociedade burguesa com o os resíduos das operações industriais.

Retirar da noção de selfhood o seu sentido mais personalizado, é ser, desde já, incapaz de apreender, em toda a sua extensão, o uso de qualquer palavra que contenha o prefixo “auto”. A auto-atividade, para usarmos outra palavra possível, implica justamente o uso dessa força individual, bem com o a sua aplicação a o processo social. A auto-atividade assenta, ela também, sobre uma política pessoal que, por um lado, seja uma escola de formação do indivíduo e, por outro, a capacidade de intervir e de pesar sobre os acontecimentos sociais. Sem discernimento pessoal, força moral, vontade e sensibilidade necessária à atividade, entendida esta no seu sentido mais nobre e completo, a expressão do eu tende a reduzir-se a uma relação de incapacidade, a uma relação de obediência e obrigação. A auto-atividade, no seu sentido mais profundo, só pode então ser ação direta. Mas também a ação direta, tal como a ideia de governo, só pode ser concebida com o expressão de um eu comprometido. A prática deste compromisso, que se torna uma autêntica ginástica do cotidiano, é então o culminar daquilo que poderíamos chamar de uma auto-atualização.

A organização segundo os princípios anarquistas é aquela que melhor pode hoje responder a esta necessidade de dar uma expressão cada vez mais lata ao eu. Ela é a agora, por assim dizer, de uma política da personalidade. A forma como se organiza “o grupo de afinidades” é ele mesmo a expressão de uma associação baseada no reconhecimento mútuo das capacidades de cada um. Quando o grupo perde esta orientação, ele tende a tornar-se então um simples eufemismo. O grupo libertário de afinidades pode ser uma união ética de indivíduos livres e moralmente fortes, capazes de tomarem decisões por consenso, já que eles vivem em um reconhecimento mútuo de competências recíprocas. Não é senão no preenchimento desta condição básica, que implica uma autêntica revolução do ser humano, que um grupo pode se pretender revolucionário e participante ativo de uma sociedade e de uma relação libertária.

Detive-me sobre estes aspectos, que se relacionam com o prefixo auto, por me parecer que este é justamente o elo mais fraco do conceito de autogestão. Enquanto uma tal política do eu não for explicitamente aceita e praticada, a autogestão não passará, nos seus próprios termos, de um paradoxo sem saída. A autogestão, sem a autonomia pessoal que lhe dá, de imediato, um sentido de empenhamento individual, arrisca a transformar-se no seu próprio contrário. Isto é, uma hierarquia baseada na obediência e na autoridade. A abolição da exploração de classe não se opõe, de modo nenhum, à existência de tais relações hierárquicas. Estas podem subsistir no seio da família ou até no seio de estruturas burocráticas que pretendem executar as decisões de uma sociedade ou de uma organização “libertária”. O único remédio possível para uma tal situação, que pode perfeitamente compreender os grupos anarquistas, mesmo os mais radicais, é então o desenvolvimento de um processo de “autoconsciência” capaz de, através de uma espécie de sabedoria e de uma auto-atualização constante, chegar a uma autonomia do ser. De Sócrates [10] a Hegel, é essa a mensagem da filosofia ocidental. O seu apelo a favor da consciência individual e da sabedoria, entendidas enquanto intérpretes da verdade, se torna hoje ainda mais gritante e atual.

Antes de retomarmos as ligações possíveis da tecnologia com um processo de autoformação, é importante não esquecermos que a noção de autonomia precede historicamente a ideia de autogestão. Não deixa de haver ironia no fato de a autonomia significar independência, com todas as implicações de natureza burguesa e oitocentista que o termo hoje tem, e não uma forma de estar do indivíduo social. No fundo, a ideia de autonomia, entendida com o forma de autogoverno, se aplica à sociedade com o um todo, e não apenas à economia. A noção de autonomia grega aplicava-se, no seu sentido mais pleno, à polis e não apenas à oikos, aplicava-se no próprio funcionamento da comunidade social e não apenas ao funcionamento técnico. Deste modo, a autogestão significa hoje, antes de mais nada, a gestão das aldeias, dos bairros e das cidades. A gestão social torna-se mais importante do que a simples gestão técnica. Nas duas grandes revoluções que abriram a era moderna, a Revolução Francesa e a Independência Americana, nós assistimos ao emergir de uma autogestão popular, nas assembleias de cidadãos, de Boston a Charleston, e nas associações de bairro em Paris. O caráter vivo e palpitante da autogestão de então contrasta nitidamente com a sua esfera, tão reduzida ao problema económico, de hoje. Seria redundante e desnecessário, dada a impressionante produção de Kropotkin neste campo, insistir ainda sobre a sua oposição, bem como estudar períodos sociais anteriores para justificá-la. O que é praticamente indiscutível é que a autogestão teve um sentido bem mais aberto e completo do que aquele que tem hoje.

A tecnologia, na explicação desta mudança, merece um lugar bem mais importante do que aquele que geralmente lhe é dado. A natureza artesanal da sociedade pré-capitalista deixava, pelas suas próprias condições, um importante lugar a um certo desenvolvimento libertário subterrâneo. Sob as instituições imperiais dos Estados europeus e asiáticos, havia sempre lugar para sistemas de associações, essencialmente baseadas na família, na aldeia e na corporação, que nem o exército nem o coletor de impostos podiam reprimir. Tanto Marx como Kropotkin deram-nos a descrição exata do funcionamento deste tipo de sistema social: um mundo arcaico, praticamente estático e resistindo à mudança. A cidade grega e a congregação cristã davam a este conjunto reflexos de individualidade, que permitiam uma maior autoconsciência e uma maior autonomia pessoal. Nas democracias urbanas da Europa Central, tal como na cidade grega, a autogestão municipal teve tonalidades muito ricas e fortes. Foi justamente aí que nasceu o direito a uma individualidade social, que mais tarde inspiraria as concepções mais avançadas de autogestão.

Não poderá, evidentemente, haver qualquer espécie de retorno a esses períodos. As suas limitações, de toda a ordem, são bem conhecidas. Mas as forças materiais que contribuíram para o seu desaparecimento definitivo são, também elas, mais transitórias do que se pensa. De todas as transformações técnicas que diferenciam a nossa época das anteriores, nenhuma teve, por si só, mais importância do que a menos “técnica” de todas elas: a fábrica. Com o risco de avançar demasiado depressa, direi que nem a máquina a vapor de Watt [11] nem o forno de aço de Bessemer [12] tiveram mais importância, no aspecto técnico, do que a simples racionalização do trabalho no processo industrial.

A maquinaria contribuiu largamente para este processo, mas foi a racionalização sistemática do trabalho que demoliu a estrutura técnica das sociedades autogeridas.

Façamos agora, por um breve instante, o contraponto da situação. O artesanato baseia-se na habilidade pessoal e um reduzido campo técnico. A habilidade é a sua base de existência real. Com feito, o artesanato baseia-se na mobilidade de tarefas, variedade, motivação pessoal e o empenho de todo o corpo. O seu pano de fundo é uma espécie de canto que se canta enquanto se trabalha; a sua espiritualidade é o gosto pela articulação dos materiais, de modo a obter uma peça simultaneamente útil e bela. Não nos surpreende, pois, que a divindade platónica seja, literalmente, um artesão a imprimir forma à matéria. A premissa que dá origem ao artesanato é então a seguinte: uma virtuosidade pessoal que passa por um saber tão ético, espiritual e estético como técnico.

O artesanato é a atividade livre e criativa e não o trabalho cansativo. E a atividade sensível, que desperta no ser o seu sentido de autonomia, e não o trabalho embrutecedor, na esfera técnica. Ele é, por excelência, uma expressão da autodeterminação e da individualização da consciência e da liberdade. Estas palavras adquirem todo o seu significado no sentimento artístico do trabalho e na ideia de que cada objeto tem uma individualidade própria.

Para o operário de hoje, tudo isso não passa de uma vaga e imprecisa lembrança. O barulho peculiar da fábrica de hoje abafa o próprio pensamento. A divisão do trabalho nega ao trabalhador qualquer relação mais explícita com o objeto fabricado [13]. A racionalização do trabalho adormece-lhe os sentidos e esgota-lhe o corpo. Não há qualquer lugar para um modo de expressão artístico ou espiritual, onde o trabalhador não seja ele também reduzido a um simples objeto. A distinção que a língua faz entre artesão e operário é, por si só, suficientemente significativa. Duas razões foram, no entanto, necessárias para determinarem que esta passagem do artesanato ao trabalho da fábrica, se tornasse em um desastre social de primeira grandeza. A primeira foi a desumanização a que o trabalhador foi sujeito, passando a ser considerado não enquanto identidade própria, mas enquanto série. A segunda foi a hierarquização a que foi reduzido.

Não deixa de ser significativo que este mesmo empobrecimento do trabalhador tenha sido concebido por Marx e Engels como a prova mais evidente do caráter revolucionário do proletariado. E foi também a partir deste terrível mal-entendido que o sindicalismo acabou por se tornar uma concepção marxista de mobilização social.

Ambos encaram a fábrica mais como uma espécie de escola da revolução, do que propriamente como a sua ruína. Ambos acabam por atribuir à fábrica um papel estrutural de primeira ordem na mobilização e na movimentação social. Contudo, tanto para melhor como para pior, Marx e Engels exprimem com muito mais determinação este ponto de vista. O proletariado marxista não é senão um instrumento da História. A sua despersonalização, como categoria exclusiva da economia política, libertou-o paradoxalmente de qualquer caráter humano, reduzindo a sua individualidade à sua necessidade. Ele deixa de possuir uma vontade própria, para passar a ter apenas uma vontade histórica. Ele é, como classe em estado bruto, um instrumento histórico no sentido mais estrito. Desta forma, para Marx, “a questão não é saber o que o proletariado quer ou considera como sua finalidade, mas sim, antes de tudo, saber qual a natureza do proletariado, para depois então saber, a partir da sua própria natureza, aquilo que ele terá necessariamente de fazer”.

Assim, a natureza aparece-nos separada do ser, a ação separada da vontade e a atividade social separada da capacidade de autodeterminação. A ausência de uma capacidade de autodeterminação no proletariado é aquilo que faz dele simultaneamente um agente social universal. A citação feita acima, extraída da obra A Sagrada Família [14], escrita no início dos anos 40 do século XIX é, com efeito, indispensável para compreendermos a obra futura de Marx. Sem ela, toda a obra posterior de Marx, apesar de uma retórica sobre a superioridade moral do proletariado, torna-se incompreensível.

Neste sentido, não nos surpreende que a fábrica seja, para Marx, a arena sagrada onde se joga, de forma decisiva, não só o destino do proletariado como a sua educação de classe e de agente social. A técnica reveste-se então de um caráter que põe em causa não só a relação do homem com a natureza, como as relações do homem consigo próprio.

Marx insiste no fato de que, ao mesmo tempo que ocorre a centralização industrial, a competição e a expropriação, “cresce a miséria, a opressão, a escravatura, a exploração, e por conseguinte cresce também a revolta da classe operária, impulsionada e motivada pelo próprio processo de produção capitalista”. E diz ainda: “O monopólio do capital torna-se a própria cadeia do processo de produção capitalista. Esta frágil casca voará em mil pedaços. O canto de cisne soa para a propriedade privada capitalista. Os expropriadores serão expropriados” (final do Volume I de O Capital, itálico do autor).

A importância destas célebres linhas, escritas por Marx, reside justamente no papel que elas atribuem à fábrica, como fator de unificação e de organização do proletariado “pelo próprio processo de produção capitalista”. A fábrica torna-se então, da mesma forma que fabrica objetos, produtora de revolucionários. Este ponto de vista específico é também intrínseco ao sindicalismo. Em ambos, a fábrica não é apenas uma estrutura técnica, mas também social. Marx tendeu a subestimar o papel desta estrutura, considerando-a como uma necessidade, que devia ser atenuada pela existência de um tempo livre, que não pusesse contudo em causa a existência da fábrica, compatível com a ideia de comunismo.

O sindicalismo, pelo contrário, sublinha a importância desta mesma estrutura social, na medida em que ela constitui o próprio invólucro da sociedade idealizada pelos sindicalistas. Mas ambos esquecem que a fábrica é um lugar em si mesmo privilegiado, com profundas implicações na organização, não só do proletariado como classe, mas na própria organização da sociedade inteira.

Aqui chegados, não me parece difícil perceber que a fábrica, como estrutura social, longe de ter um papel positivo e mobilizador de transformações sociais importantes, tem antes um papel regressivo. Tanto para o marxismo como para o sindicalismo, em virtude da importância que atribuem à fábrica, a autogestão não passa de uma forma de gestão industrial. A autodeterminação, entendida como capacidade de autonomia e de decisão individual, não pode existir no interior da própria fábrica.

A fábrica desumaniza o proletariado e a liberdade está forçosamente para além dela. Com efeito, como o próprio Marx reconhece, a liberdade “não pode ser senão, para o homem socializado, o poder de controlar e de gerir, de forma racional e coletiva a produção, em vez de ser dominado, de forma cega, por ela” (Volume II I de O Capital). E ainda: “Para além da necessidade, começa o desenvolvimento de um poder pessoal e humano que é afinal, nos seus próprios limites, o verdadeiro lugar da liberdade humana; que no entanto necessita, na sua base, do próprio domínio da necessidade. A diminuição do tempo de trabalho é hoje então uma premissa fundamental da reconquista da liberdade”.

A fábrica não pode, de fato, ser o lugar da autogestão em um sentido amplo e criativo, já que ela é, por excelência, “o reino da necessidade”. Ela é mesmo a antítese possível de uma escola que favoreça a livre formação do indivíduo, como, por exemplo, a agora grega, com a sua noção de educação, favorecia. Quando o marxismo contemporâneo se limita a reclamar o “controle operário”, ele acaba por esquecer as mais interessantes premissas de Marx sobre a liberdade. Engels, no seu ensaio Sobre a Autoridade [15], que retoma algumas das críticas feitas por Marx aos anarquistas, leva estas críticas até às suas consequências mais extremas. A autoridade, como “imposição da vontade de alguém sobre a nossa”, é, segundo ele, inevitável em qualquer sociedade industrial, comunista ou não. A coordenação das operações industriais supõe então uma submissão às ordens vindas de cima, e ainda ao “despotismo” (palavras de Engels) da máquina e à “necessidade de uma autoridade imperiosa” na administração da produção. Engels não nos desilude, com efeito. Ele compara constantemente a máquina e o seu papel de autoridade com o capitão de um navio que exige uma fidelidade e uma obediência tão absoluta como instantânea. Ele confunde a coordenação com a autoridade, a organização com a hierarquia, o acordo livremente determinado com a dominação.

Seja como for, a fábrica não deixa de ser o domínio da necessidade e não aquele da liberdade. Ela é uma escola de hierarquia, de autoridade e de submissão e não de emancipação. Ela reproduz constantemente a servidão do proletariado e a incapacidade deste em superar o domínio estreito da necessidade. Desta forma, para os marxistas, a autogestão, a auto-atividade e autodeterminação, ao serem essencialmente uma questão superestrutural, que pertence ao domínio exclusivo da liberdade, não deviam então ser levadas em conta nessa “base material” da sociedade, onde a fábrica e a técnica são consideradas apenas como fatores naturais de produção.

Pedem-nos ainda, por outro lado, para concebermos este domínio da necessidade, onde cresce, com o reconhecia Engels, a imperiosa autoridade, com o uma escola capaz de dar ao trabalhador uma nova consciência universal; como se este ser perfeitamente alienado, sem capacidade de autodeterminação própria, pudesse determinar, por si só, uma completa revolução social e caminhar decididamente para uma sociedade livre e autogestionária (entendida, é claro, a autogestão no seu sentido mais amplo e nobre). Porém, a sociedade livre de que nos fala Engels – e é esse o pecado histórico de todo o marxismo – não se liberta da hierarquia. Ela apenas pretende abolir a hierarquia em um domínio ( o domínio da liberdade) para a impor noutro (o da necessidade). Levado às suas últimas consequências, este paradoxo arrisca-se a tomar proporções deveras absurdas.

Também o sindicalismo foi vítima, quase da mesma forma que o marxismo, deste mesmo paradoxo. Mas ele redime-se por uma certa consciência, muito explícita nas obras de Charles Fourier [16], de que a tecnologia se deve desembaraçar dos seus aspectos hierárquicos e repressivos, ao mesmo tempo que a sociedade se liberta dos seus aspectos mais negativos. Esta consciência relativamente interessante do sindicalismo, não deixa contudo de ser pervertida pela ideia de que a fábrica será a infra-estrutura mais adequada da nova sociedade. Daí que a tecnologia tenha sido sempre para o sindicalismo, e falo até do sindicalismo libertário, um problema insolúvel e sem qualquer resposta. Através de quê os trabalhadores, e todas as outras minorias oprimidas (mulheres, jovens, idosos, pequenos grupos étnicos e culturais), poderão ter acesso à capacidade de se autodeterminarem? Quais as tecnologias que poderão eventualmente substituir – dando-nos uma maior facilidade de auto-gestão e de autoformação – as atuais? E, finalmente, que tipo de “gestão” se torna compatível com uma maior liberdade e uma probidade moral que seja simultaneamente competência e sabedoria?

A resposta a cada uma dessas três perguntas pediria um trabalho considerável. Eu me limitarei a responder aqui, de forma breve, à segunda questão: saber quais as tecnologias que, pelas suas características potencialmente libertadoras, poderão substituir a fábrica em uma sociedade libertária.

Tecnologia e mudança social

A técnica não é um “fator natural”, tal como não são fatores naturais a agricultura e a alimentação tratadas de uma forma química ou produzidas de uma forma sintética. Longe de nos ser meramente dada, a técnica constitui um dos mecanismos mais maleáveis que a humanidade possui. As instituições, os valores, os códigos culturais empregados pelos seres humanos são, com efeito, muito mais reticentes à mudança do que, propriamente, os instrumentos que os materializam. A “neutralidade” da técnica sobre as relações sociais é apenas mais um mito. Ela, a técnica, mergulha em um universo social de intenções, de necessidade, de desejos e de interações.

A fábrica também tem uma dimensão social, só que a exibe como uma vingança. A sua aparição no mundo não se deve apenas a fatores mecânicos, mas também a fatores orgânicos. A fábrica é um meio de racionalizar o trabalho e não de libertar os homens do trabalho através dos instrumentos. Compreendida esta questão, a fábrica perde esse interesse e essa autonomia que, de forma radical, lhe atribuía Engels. Ela só é uma necessidade na medida em que alguma coisa alimenta essa necessidade. Com efeito, esta necessidade não é estritamente técnica, mas sobretudo social. A fábrica é o domínio da hierarquia, e não o campo de batalha e um conflito eterno entre o homem e a natureza. A partir do momento em que as funções sociais da fábrica foram postas em causa, nós pudemos então, com toda a facilidade, nos perguntarmos qual a necessidade das fábricas. Do mesmo modo, o dinheiro, o armamento e a energia nuclear [17] são apenas necessárias a uma determinada sociedade. A “necessidade” é, em si mesmo, um fenómeno socialmente determinado, fato que não era decerto desconhecido para Marx.

O “domínio da necessidade” tem assim fronteiras muito vastas e relativas. Ele depende, na verdade, da visão que cada um de nós tem da liberdade. Separar necessidade e liberdade não passa de um pressuposto ideológico, pois é bem possível que a liberdade não seja determinada pela necessidade mas, pelo contrário, a determine.

Naquilo que há de melhor na obra de Fourier, esta conclusão está sempre implícita. Os dois domínios, o da necessidade e o da liberdade, encontram a sua síntese em um nível superior de valores, onde a alegria, a criatividade e o prazer são fins em si próprios. A liberdade torna-se mais importante que a necessidade, e a alegria adquire mais valor do que o trabalho. Mas tais valores não podem, no entanto, ser levados em conta de uma forma abstrata. É preciso estabelecer concretamente tais valores, de modo a que as ricas possibilidades da realidade não se transformem em categorias ilusórias que escapam às exigências da imaginação. Daí o extraordinário interesse do pensamento utópico, nos seus melhores momentos. Ele nos dá a possibilidade de ver aquilo que é geralmente o domínio abstrato das ideologias. Neste sentido, é preciso considerar concretamente as alternativas que podem transformar o trabalho árduo em um jogo agradável e lúdico. Com efeito, uma colheita de trigo pode ser feita de duas maneiras quase opostas: a primeira, onde o amor, a festa, o canto e a alegria têm um lugar de relevo, contrasta com a segunda, onde o trabalho é feito com a monotonia das máquinas por um pequeno grupo de trabalhadores. A primeira, onde a mão-de-obra humana desempenha um papel importante, reforça o sentimento comunitário. A segunda, onde a grande maquinaria se impõe, contribui para o isolamento e para o sentimento de opressão que o indivíduo moderno sente. A mesma função, feita de formas diferentes, tanto pode ser uma obra de arte, produto de um artesanato local, como um trabalho desagradável que acentua o mal-estar dos indivíduos. Mas supor que todo e qualquer trabalho árduo é necessariamente um trabalho violento é também um pressuposto ideológico, um juízo social determinado que parte mais da própria estrutura social do que propriamente das condições técnicas de trabalho. O empresário que exige dos seus trabalhadores o máximo de silêncio é, de fato, um empresário, porque o mesmo trabalho pode, em condições de liberdade e na ausência de condicionamentos sociais relevantes, ser executado com alegria, com imaginação, com criatividade e, até mesmo, de uma forma artística.

Fiz, noutro lugar, o inventário das técnicas alternativas existentes [17]. Desde então, eu teria decerto muitas coisas a acrescentar e muitas outras a retirar. Porém, mais importante do que estas precisões, que podem ser afinal encontradas em livros notáveis, de que o Radical Technology dos libertários britânicos é um bom exemplo, são os princípios sobre os quais eu gostaria de insistir aqui. Uma nova tecnologia está hoje emergindo. Ela é tão importante para o futuro como é a fábrica para o presente. Ela traz consigo um critério de seleção das técnicas atualmente existentes, a partir do seu interesse ecológico e da sua relação com a liberdade humana. Nos seus aspectos de maior relevo, estas técnicas são fortemente descentralizadoras, isto é, humanas na sua própria escala, de construção muito simples e de orientação compatível com a natureza. Elas vão buscar a sua energia ao sol e ao vento, bem como aos resíduos urbanos e aos resíduos agrícolas. A agricultura alimentar pode tornar-se uma forma de atividade espiritual, materialmente rentável. Ela é muito positiva para o ambiente e favorece também, o que é ainda talvez mais importante, a autonomia das pessoas e das comunidades.

Esta nova concepção da técnica pode ser designada por “tecnologia popular”, os pequenos jardins comunitários, espontaneamente criados pelos habitantes dos guetos de Nova Iorque, os painéis solares feitos de forma quase artesanal e que aparecem com cada vez mais frequência sobre os telhados, e finalmente os pequenos moinhos de vento exprimem, todos em conjunto, a vontade de iniciativa autónoma de comunidades anteriormente passivas. Aquilo que importa mais não é saber se uma pequena cooperativa alimentar pode substituir um supermercado, se um pomar comunitário tem ou não capacidades para suplantar uma empresa agrícola industrial ou se um moinho de vento pode porventura produzir tanto como uma central nuclear. O que importa é que estas cooperativas, estes pomares e estes moinhos são, de certo modo, o ressurgimento de uma capacidade de autodeterminação pessoal, inacessível às coisas maximizadas, e ainda o ressurgimento de um sentimento de autocompetência, que em geral é negado ao cidadão comum. A imagem da cidade como fábrica, imagem muito divulgada, já foi tão longe, que as formas técnicas e institucionais alternativas têm também de ser suficientemente radicais e profundas.

Dada a situação da fábrica, é necessário, para ouvirmos os apelos da autogestão, irmos aos bairros e aos movimentos feministas e ecologistas e perto de todos aqueles que já tenham adquirido uma autonomia pessoal, cultural, sexual e cívica. A nova tecnologia pode ser o resultado de uma nova sensibilidade, de uma nova competência e de uma nova consciência. A energia solar ou eólica, bem como o pomar artesanal são opções técnicas bem mais antigas que a fábrica.

Que elas possam renascer hoje sob o nome de tecnologia popular ou alternativa, é apenas o indício de que há a necessidade de operar uma mudança no sistema social atual. Estas técnicas alternativas nos dão hoje, justamente, o contexto possível, e talvez histórico, para uma tal mudança social. Elas permitem que a autogestão seja efetivamente uma realidade viva e concreta, que traz do passado os aspectos mais positivos. Todos estes aspectos, fazem delas realidades e, em certa medida, utopias, mas não simples visões. Finalmente, como dispositivos educativos comunitários, elas tendem a desenvolver uma política de personalidade, só comparável com aquela que o “grupo de afinidade” anarquista, entendido como arena educativa, pode desenvolver

A importância destas alternativas atingiu hoje um tal grau que só podemos compará-la com a decomposição da sociedade tradicional na véspera do capitalismo. Estas alternativas podem, contudo, tornar-se uma tecnologia industrial, na base de centrais solares gigantescas ou na base de uma agricultura biológica tão intensiva como a que existe hoje. Os pequenos pomares, os painéis solares, os moinhos de vento, os centros de reciclagem, podem hoje ser recentralizados e reestruturados, segundo esquemas repressivos e hierárquicos. Nem o marxismo nem o sindicalismo podem perceber a natureza mais profunda destas alternativas atuais. E precisamos, no entanto, de esquemas teóricos capazes de interpretarem as novas possibilidades sociais que se abrem hoje à humanidade. Somente, parece-me, uma sensibilidade libertária poderá fornecer tais critérios. Na ausência de uma consciência capaz de articular a lógica social de um tal quadro técnico, as mais ricas possibilidades poderão inevitavelmente perder-se, enquanto nós assistimos à integração desta tecnologia alternativa na lógica de uma sociedade repressiva e tecnocrática. Nesse caso, nós teremos sido reduzidos, como um coro da antiga Grécia, a um destino que não controlamos. Talvez, em tal posição, exista algo de heróico, o que não quer dizer que não existe também algo de trágico.

 

A Ideia, Lisboa, n° 36-37, junho de 1985


[1] Herbert Marshall McLuhan (1911-1980), filósofo e teórico da comunicação canadense, famoso pelos inovadores conceitos de “aldeia global” e “o meio é a mensagem”. Foi pioneiro no estudo dos impactos das tecnologias de comunicação e informação na construção da sociedade humana, em sua obra clássica de 1962, A Galáxia de Gutenberg (São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1969) (N. do R.)

[2] Jacques Ellul (1912-1994), filósofo, sociólogo, teólogo e anarquista cristão francês, conhecido por suas preocupações acerca da emergência de uma “tirania tecnológica” sobre a humanidade (que forneceram inspiração ao movimento primitivista). (N. do R.)

[3] Basta, neste sentido, observar o lugar que a cibernética tomou na linguagem cotidiana. Nós já não pedimos um “conselho” a alguém, pedimos o seu retorno (feedback). Em vez de estabelecermos um diálogo, nós solicitamos uma “entrada”. Esta invasão sinistra do mundo do logos, entendido como razão, representa a subversão não só das interações humanas, mas da própria personalidade como fenómeno orgânico de desenvolvimento. O homem-máquina de La Mettrie integra hoje a sua propriedade moderna como um sistema cibernético, não apenas ao nível físico mas ao nível da sua própria subjetividade. (N. do A.)

[4] Bookchin faz referência aqui ao título do famoso livro do economista alemão Ernst Friedrich Schumacher, Small Is Beautiful (publicado em 1973), que divulgou o conceito de “tecnologia intermediária” ou “apropriada”, descentralização e aplicação de princípios ecológicos na atividade económica, em oposição ao gigantismo, centralização e agressão ao meio ambiente da tecnologia industrial. O livro de E. F. Schumacher exerceu forte influência sobre o movimento ecológico da década de 70 e foi publicado no Brasil com o lastimável título de O Negócio é Ser Pequeno (Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977). (N. do R.)

[5] Referência ao acidente ocorrido na usina nuclear de Three Mile Island, em Harrisburg, Pensilvânia, em 29 de março de 1979, cujo reator sofreu uma fusão parcial, provocando vazamento de radioatividade na atmosfera a uma distância de até 16 quilómetros em uma intensidade até oito vezes maior do que a dose letal, o que levou 140 mil pessoas a deixarem a área afetada. Foi considerado o pior acidente nuclear na história, até ser superado pelo acidente na usina de Chernobyl, na Ucrânia, em 1986. (N. do R.)

[6] A noção inglesa de selfhood poderia ser traduzida em português, um pouco desajeitadamente, por autodeterminação. O sufixo hood reforça a ideia de capacidade individual e de atividade pessoal. (N. do T.)

[7] Principal assembleia popular da democracia ateniense, aberta a todos os cidadãos adultos do sexo masculino, de todas as classes. (N. do R.)

[8] Praça principal na polis, considerada o símbolo da democracia ateniense, na qual quase todos os cidadãos (isto é, apenas os adultos do sexo masculino) tinham direito a voz e voto. (N. do R.)

[9] Deve estar claro para o leitor que, ao falar de política, eu uso a palavra no sentido helénico, isto é, como administração da polis, e não em qualquer sentido eleitoral. A administração da polis era para os atenienses um processo de educação constante, bem como uma atividade social de primeira grandeza em que cada cidadão tinha responsabilidades. (N. do A.)

[10] Notável filósofo grego, que viveu de 469 a 399 a.C , considerado um dos fundadores da tradição filosófica ocidental, embora permaneça uma figura enigmática conhecida apenas pelos trabalhos de seus discípulos (principalmente os celebres Diálogos de Platão).

[11] James Watt (1736-1819), matemático e engenheiro escocês que aperfeiçoou a máquina a vapor, patenteada por ele em 1769, a qual abriu o caminho para a primeira Revolução Industrial. (N. do R.)

[12] Henry Bessemer (1813-1898), engenheiro metalúrgico inglês, um dos pioneiros da primeira Revolução Industrial, criador de um processo para fabricação de aço que patenteou em 1856 e foi utilizado até meados do século XX (N. do R.)

[13] Para uma discussão ampliada desse assunto, ver os ensaios incluídos na coletânea editada por André Gorz, Crítica da Divisão do Trabalho (São Paulo: Martins Fontes, 1996). (N. do R.)

[14] A Sagrada Família ou A Crítica da Crítica contra Bruno Bauer e consortes foi publicado por Marx e Engels em 1845 como crítica aos jovens hegelianos (Bruno e Edgar Bauer, entre outros). (N. do R.)

[15] Publicado cm 1872 (N. do R.).

[16] François Marie Charles Fourier (1772-1837), filósofo e socialista libertário francês. Propôs a criação de unidades de produção e consumo que chamou de falanges ou falanstérios, baseadas no cooperativismo integral e autosuficiente, em princípios de afinidade e ajuda mútua (hoje denominadas “comunidades intencionais”). Foi pioneiro na luta pela igualdade de género entre homens e mulheres, introduzindo o termo “feminismo”. Adeptos de suas ideias fundaram comunidades intencionais nos Estados Unidos e, também, no Brasil (o Falanstério do Saí em Santa Catarina em 1841, e a Colónia Cecília no Paraná em 1980). O socialismo libertário de Fourier foi rotulado de “utópico” por Marx e Engels já em seu famoso Manifesto de 1848 e trabalhos posteriores, mas suas ideias foram resgatadas no século XX e rediscutidas por anarquistas como Paul Goodman, Bob Black e Hakim Bey. (N. do R.)

[17] Cf. o artigo “Toward a liberatory tecnology“, no meu livro Post-Scarcity Anarchism (Montreal: Black Rose Books, 1977). (N. do A.)