Uma Nota ao Leitor

Uma Nota ao Leitor

Murray Bookchin

Esse pequeno livro foi escrito para tratar do fato de o anarquismo encontrar-se num ponto decisivo em sua longa e turbulenta história.

Num tempo em que a desconfiança popular em relação ao Estado chegou a níveis extraordinários em diversos países; em que a sociedade, nas mãos de um número bastante reduzido de corporações e indivíduos abastados, apresenta um nítido contraste, por razão do empobrecimento crescente de milhões de pessoas, em proporções jamais vistas desde a década da Grande Depressão; em que a intensidade da exploração tem forçado, cada vez mais, as pessoas a aceitarem uma semana de trabalho com duração típica do século XIX — os anarquistas não criaram um programa coerente e nem uma organização revolucionária para direcionar o descontentamento da massa que a sociedade contemporânea está criando.

Em vez disso, tal descontentamento está sendo absorvido pelos políticos reacionários e canalizado para a hostilidade contra minorias étnicas, imigrantes, pobres e marginalizados, como mães solteiras, sem-teto, idosos e até contra ambientalistas, que vêm sendo colocados como principais fontes dos problemas sociais contemporâneos.

O fracasso dos anarquistas — ou, pelo menos, de muitos autointitulados anarquistas — em conseguir um vasto grupo de apoiadores tem origem não apenas nesse senso de impotência que hoje permeia milhões de pessoas. Isso se deve, em grande medida, às mudanças ocorridas com muitos anarquistas nas últimas duas décadas. Goste-se disso ou não, milhares desses autointitulados anarquistas foram aos poucos abandonando o cerne social das ideias anarquistas, em favor de um personalismo yuppie e new age, que vem sendo disseminado em todo o mundo e que marca esta época decadente e aburguesada. Em termos muito concretos, eles não são mais socialistas — defensores de uma sociedade libertária fundamentada nas comunidades — e abstêm-se de qualquer compromisso com um confronto social organizado e programaticamente coerente contra a ordem existente. Cada vez mais, esses autointitulados anarquistas vêm seguindo uma tendência do momento, em grande medida da classe média, que aponta para um personalismo decadente, em nome de sua “autonomia” soberana; para um misticismo nauseante, em nome de um “intuicionismo”; para uma visão edênica da história, em nome do “primitivismo”. Na verdade, o próprio capitalismo vem sendo mistificado por muitos desses autointitulados anarquistas, que o colocam como uma “sociedade industrial”, abstratamente concebida. As várias opressões da sociedade vêm sendo grosseiramente atribuídas ao impacto da “tecnologia”, e não às relações sociais fundamentais entre capital e trabalho, estruturadas em torno de uma economia de mercado disseminada globalmente, que tem impregnado todas as esferas da vida, desde a cultura até as amizades e a família. A tendência de muitos anarquistas em considerar a origem dos males da sociedade a “civilização”, e não o capital e a hierarquia; a “grande máquina”, e não a mercantilização da vida; as obscuras “simulações”, e não a tirania bastante palpável das explorações e das carências materiais — essa tendência não difere da apologia burguesa do “downsizing” nas corporações modernas, como resultado de “avanços tecnológicos”, e não do insaciável apetite por lucro da burguesia.

Nas páginas seguintes, enfatizo a permanente fuga desses autointitulados anarquistas do domínio social, principal campo de atuação dos antigos anarquistas, como os anarcossindicalistas e os comunistas libertários revolucionários. Uma fuga em direção às aventuras ocasionais, que evitam qualquer compromisso organizacional ou coerência intelectual — e, ainda mais perturbador, em direção a um egoísmo brutal, que se sustenta na mais ampla decadência cultural da sociedade burguesa de nossos dias.

Os anarquistas, para ser claro, podem merecidamente celebrar o fato de estarem reivindicando, já há muito tempo, a liberdade sexual, a estetização da vida cotidiana e a libertação da humanidade dos constrangimentos psíquicos opressores, que negaram a ela sua completa liberdade física e intelectual. Como autor de “Desire and Need”, escrito uns trinta anos atrás, só posso aplaudir a exigência de Emma Goldman de não querer uma revolução a cujo som ela não pudesse dançar — e, conforme acrescentaram meus pais, membros do IWW[2], no início deste século, na qual não pudessem cantar.

No entanto, esses anarquistas ao menos insistiam em uma revolução — uma revolução social —, sem a qual esses objetivos estéticos e psicológicos não poderiam ser atingidos por toda a humanidade. E fizeram deste esforço revolucionário fundamental o centro de todas as suas esperanças e ideais. É lamentável que tal esforço revolucionário, na verdade o generoso idealismo e a magnânima consciência de classe, sobre os quais ele se apoia, tem sido cada vez menos importante para esses autointitulados anarquistas, com os quais me deparo hoje. É precisamente a perspectiva social revolucionária, tão básica na definição de um anarquismo social, com todos os seus fundamentos teóricos e organizacionais, que pretendo retomar na investigação crítica do anarquismo de estilo de vida, que ocupa as páginas que seguem. A menos que eu esteja gravemente equivocado — e espero estar — os objetivos sociais e revolucionários do anarquismo vêm sofrendo um amplo desgaste, a ponto de a palavra anarquia estar se tornando parte do elegante vocabulário burguês do século XXI — desobediente, rebelde, despreocupado, mas deliciosamente inofensivo.

12 de julho de 1995

 

[2] Industrial Workers of the World, sindicato revolucionário dos Estados Unidos que existe desde 1905. [N. do T.]