O Anarcoindividualismo e a Reação
O Anarcoindividualismo e a Reação
Murray Bookchin
Na verdade, o individualismo ideológico não desapareceu completamente durante esse período de grande agitação social. Diversos anarcoindividualistas, especialmente no mundo anglo-americano, alimentaram-se das ideias de John Locke e John Stuart Mill, e também das ideias do próprio Stirner. Individualistas autóctones, com diversos níveis de compromisso em relação às concepções libertárias, espalharam a confusão no horizonte anarquista. Na prática, o anarcoindividualismo atraiu indivíduos, desde Benjamin Tucker, nos Estados Unidos — partidário de uma estranha versão da livre concorrência —, até Federica Montseny, na Espanha — que, muitas vezes, honrou suas concepções stirnerianas. Apesar da confissão ideológica anarcocomunista, nietzschianos como Emma Goldman continuaram, em espírito, bem próximos dos individualistas.
Os anarcoindividualistas poucas vezes tiveram alguma influência sobre a classe operária que surgia naquele momento. Expressavam sua oposição em termos pessoais e peculiares, especialmente por meio de panfletos inflamados, comportamentos extravagantes e estilos de vida aberrantes, nos guetos culturais do fin de siècle de Nova York, Paris e Londres. Como uma crença, o anarcoindividualismo deu corpo, em grande medida, a um estilo de vida boêmio, que se evidenciou nas reivindicações de liberdade sexual (“amor livre”) e no fascínio pelas inovações na arte, no comportamento e nas roupas.
Nos tempos de grave repressão e de um imobilismo social mortal, os anarcoindividualistas tomaram a linha de frente das atividades libertárias — fundamentalmente pelo envolvimento nos atos terroristas. Na França, na Espanha e nos Estados Unidos, os anarcoindividualistas envolveram-se em atos de terrorismo que terminaram por dar ao anarquismo uma imagem de conspiração sinistra e violenta. Aqueles que se converteram ao terrorismo geralmente não eram socialistas libertários ou comunistas, mas homens e mulheres desesperados, que utilizavam armas e explosivos para protestar contra as injustiças e o obscurantismo de seu tempo, supostamente em nome da “propaganda pelo fato”. No entanto, o anarcoindividualismo expressou-se, na maior parte das vezes, por meio do comportamento cultural questionador. Foi ganhando notoriedade no anarquismo à medida que os anarquistas perdiam seu vínculo com uma esfera pública viável.
O contexto social reacionário de hoje explica bem a emergência de um fenômeno no anarquismo euro-americano, que não pode ser ignorado: a propagação do anarcoindividualismo. Nestes tempos, em que até as respeitáveis formas de socialismo fogem, desesperadamente, dos princípios que poderiam ser interpretados como radicais, as questões de estilo de vida estão, novamente, suplantando a ação social e as políticas revolucionárias anarquistas. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, países tradicionalmente individualistas e liberais, os anos 1990 estão transbordando de autointitulados anarquistas que — desconsiderando a retórica radical e exibicionista — vêm cultivando um anarcoindividualismo moderno, que chamarei de anarquismo de estilo de vida. Suas preocupações com o ego, sua unicidade e seus conceitos polimorfos de resistência vêm, a todo momento, desgastando o caráter socialista da tradição libertária. Sem diferenças em relação ao marxismo e a outros socialismos, o anarquismo pode ser influenciado pelo ambiente burguês ao qual diz se contrapor, sendo resultado disso o crescimento do “ensimesmamento” e do narcisismo da geração yuppie, que vem deixando sua marca em muitos dos declarados radicais. Aventureirismo ad hoc, ostentação pessoal, uma aversão à teoria estranhamente similar às tendências antirracionais do pós-modernismo, celebrações de incoerência teórica (pluralismo), um compromisso apolítico e antiorganizacional com a imaginação, o desejo, o êxtase e um encantamento da vida cotidiana muito voltado a si mesmo — tudo isso reflete o estrago que a reação social causou no anarquismo euro-americano durante as últimas duas décadas.[10]
Durante os anos 1970, Katinka Matson, que organizou um pequeno tratado de técnicas para o desenvolvimento psicológico pessoal, escreve que ocorreu “uma notável mudança na forma como nos víamos no mundo. Os anos 1960”, continua ela,
encontraram a preocupação com o ativismo político, o Vietnã, a ecologia, os be-ins,[11] as comunidades alternativas, as drogas etc. Hoje, estamos nos voltando para dentro: procurando definições pessoais, aperfeiçoamentos pessoais, realizações pessoais e esclarecimentos pessoais.[12]
O pequeno e nocivo bestiário de Matson, organizado para a revista Psychology Today, cobre todas as técnicas, da acupuntura ao I Ching, do eletrochoque à reflexologia. Ela bem que poderia ter incluído o anarquismo de estilo de vida em seu tratado de soporíferos introspectivos, boa parte deles promotores da autonomia individual e não da liberdade social. A psicoterapia, em todas as suas vertentes, cultiva uma introspecção orientada para o “eu”, que busca fundar a autonomia em uma condição psicológica imóvel de autossuficiência emocional — não do “eu” socialmente envolvido, representado pela liberdade. No anarquismo de estilo de vida, assim como na psicoterapia, o ego é contraposto ao coletivo, o eu à sociedade, o pessoal ao comunal.
O ego — mais precisamente sua encarnação em vários estilos de vida — tornou-se uma ideia fixa para muitos anarquistas pós-1960, que estão desistindo da oposição organizada, coletiva e programática à ordem social existente. “Protestos” sem firmeza, traquinagens sem objetivo, afirmações dos próprios desejos e uma “recolonização” muito particular da vida cotidiana ocorrem paralelamente aos estilos de vida psicoterápicos, new age e autoorientados de baby boomers entediados e membros da Geração x. [13] Hoje, o que se passa por anarquismo nos EUA e, cada vez mais, na Europa, não é mais do que um personalismo introspectivo, que denigre o compromisso social responsável; um grupo de encontros, denominado genericamente “coletivo” ou “grupo de afinidades”; um estado de espírito, que arrogantemente ridiculariza a estrutura, a organização e o engajamento das pessoas; um parque de diversões para palhaçadas juvenis.
Conscientemente ou não, muitos anarquistas de estilo de vida citam a “insurreição pessoal” de Michel Foucault como substituta à revolução social, fundamentados em uma crítica ambígua e cósmica do poder enquanto tal, e não nas demandas de fortalecimento institucional dos oprimidos, por meio de assembleias populares, conselhos e/ou confederações. Na medida em que essa tendência exclui a possibilidade real da revolução social — colocando-a como “impossibilidade” ou “imaginário” —, ela perverte os fundamentos do anarquismo socialista ou comunista. Na realidade, Foucault sustenta que
a resistência nunca está em posição de exterioridade em relação ao poder. […] Assim, não há um único (leia-se universal) lugar exato de grande recusa, não há espírito de revolta, fonte de todas as rebeliões, ou uma lei absoluta dos revolucionários.
Presos — como todos nós estamos, no amplexo onipresente de um poder tão cósmico que, descontados os exageros e ambiguidades de Foucault, a resistência torna-se completamente polimorfa —, flutuamos à toa entre o “solitário” e o “exuberante”.[14] Suas sinuosas ideias resumem-se à noção de que a resistência deve necessariamente ser uma guerrilha, que esteja sempre presente — e que é sempre derrotada.
O anarquismo de estilo de vida, assim como o anarcoindividualismo, despreza a teoria ao utilizar referenciais místicos e primitivistas, geralmente muito vagos, intuitivos e até antirracionais, quando imediatamente analisados. Eles são mais sintomas do que causas dessa tendência à santificação do eu, utilizada como um refúgio contra o mal-estar social existente. Entretanto, os anarquismos personalistas continuam a utilizar certas premissas teóricas nebulosas, que precisam ser criticamente investigadas.
Sua linha ideológica é basicamente liberal, fundamentada no mito do indivíduo completamente autônomo, cujas reivindicações da própria soberania valem-se de axiomáticos “direitos naturais”, “valores intrínsecos”, ou, em um nível mais sofisticado, do eu transcendental kantiano, produtor de toda a realidade cognoscível. Essas tradicionais posições evidenciam-se no “eu” ou no único [ego] de Max Stirner, que tem em comum com o existencialismo a tendência de absorver toda a realidade em si mesmo, como se o universo girasse em torno das escolhas do indivíduo auto-orientado. [15]
Trabalhos mais recentes sobre o anarquismo de estilo de vida têm evitado o “eu” que tudo abarca, o “eu” soberano de Stirner, ainda que conservem sua ênfase no egocentrismo e tendam ao existencialismo, ao situacionismo reciclado, ao budismo, ao taoísmo, ao antirracionalismo ou ao primitivismo — ou, de maneira muito ecumênica, a todos eles, em várias permutações. Seus atributos comuns, como veremos, aspiram a um retorno edênico ao ego original, muitas vezes difuso ou até petulante e infantil, que aparentemente precede a história, a civilização ou uma tecnologia sofisticada — possivelmente anterior à própria linguagem —; atributos comuns que têm alimentado mais de uma ideologia política reacionária ao longo do século XIX.
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[10] Com todos os seus defeitos, a contracultura anárquica do início dos conturbados anos 1960 era bastante politizada. Ainda que utilizasse expressões como desejo e êxtase, ela era uma utilização eminentemente social, que muitas vezes ridicularizava as tendências personalistas da última geração Woodstock. A transformação da “cultura jovem”, como era originalmente chamada, forjada no início dos movimentos pelos direitos civis e pacifistas, naquilo que foram Woodstock e Altamont, juntamente com sua ênfase numa forma de “prazer” puramente autocomplacente, reflete-se na regressão do Dylan de “Blowin’ in the Wind” para o de “Sad-Eyed Lady of the Lowlands”
[11] Alusão aos eventos do final da década de 1960, como o Human Be-In, retomando os sit-ins utilizados pelos movimentos sociais desde a década de 1930. [N. do T.]
[12] Katinka Matson. “Preface”. In: The Psychology Today Omnibook of Personal Development. Nova York: William Morrow&Co., 1977
[13] Baby boomers: indivíduos nascidos durante o período de alta natalidade, especificamente na Inglaterra e nos EUA, de 1945 a 1952. Geração X: referência à geração de pessoas nascidas no início dos anos 1970, que viram os pais hippies tornando-se yuppies, e atingiram a maioridade no final do século XX. [N. do E.]
[14] Michel Foucault. The History of Sexuality, vol. 1 (trad. Robert Hurley). Nova York: Vintage Books, 1990, pp. 95–96. TH
[15] A filiação filosófica deste eu e sua trajetória remonta a Kant através de Fichte. A posição de Stirner sobre o único [ego] é uma simples e grosseira mutação do eu kantiano, e particularmente do fichteano, marcada mais pela dominação do que pela compreensão.