Anarquismo Social ou Anarquismo de Estilo de Vida
ANARQUISMO SOCIAL OU ANARQUISMO DE ESTILO DE VIDA
Murray Bookchin
Por cerca de dois séculos, o anarquismo — um corpo extremamente ecumênico de ideias antiautoritárias — desenvolveu-se com a tensão entre duas tendências contraditórias: um compromisso pessoal com a autonomia individual e um compromisso coletivo com a liberdade social. Essas tendências nunca se harmonizaram na história do pensamento libertário. Na realidade, durante boa parte do século XIX, elas simplesmente coexistiram no anarquismo, fundamentadas em uma crença minimalista de oposição ao Estado, e não em uma crença maximalista, que concebesse a nova sociedade que deveria substituí-lo.
Isso não significa dizer que as várias escolas do anarquismo não tenham defendido formas bastante específicas de organização social, ainda que, com frequência, houvesse marcadas contradições entre elas. O anarquismo, de maneira geral, desenvolveu o que Isaiah Berlin chamou de “liberdade negativa”, ou seja, uma “liberdade de”, formal, em vez de uma “liberdade para”, substantiva. Com frequência, o anarquismo celebrou seu compromisso com a liberdade negativa como prova de seu próprio pluralismo, de sua tolerância ideológica ou de sua criatividade — ou mesmo, como alguns sacerdotes pós-modernos recentes afirmaram, de sua incoerência.
O fracasso do anarquismo em resolver esta tensão — em articular a relação entre o indivíduo e o coletivo e em enunciar as circunstâncias históricas que tornariam possível uma sociedade anárquica e sem Estado — criou problemas para seu próprio pensamento; problemas que continuam até hoje sem solução. Pierre-Joseph Proudhon, mais do que muitos anarquistas de seu tempo, esforçou-se para formular uma ideia completa de sociedade libertária. Baseado em contratos, essencialmente entre pequenos produtores, cooperativas e comunas, o projeto de Proudhon continha elementos do mundo artesanal e provinciano em que ele nasceu. Porém, seu esforço em combinar uma noção de liberdade patroniste, diversas vezes patriarcal, com acordos sociais contratuais, tinha pouca profundidade. O artesão, a cooperativa e a comuna, relacionando-se entre si, em termos contratuais burgueses de equidade ou de justiça, e não em termos comunistas de capacidade e necessidade, refletiam a propensão dos artesãos à autonomia pessoal, deixando indefinido qualquer compromisso moral com o coletivo, para além das boas intenções de seus membros.
Na verdade, a famosa frase de Proudhon: “qualquer um que ponha as mãos sobre mim para me governar é um usurpador, um tirano; e eu o declaro meu inimigo”, expressa uma liberdade negativa e personalista, que ofusca sua oposição às instituições sociais opressoras e ao projeto de sociedade anarquista concebido por ele. Sua afirmação harmoniza-se, sem grandes esforços, com a declaração individualista de William Godwin: “Há apenas um poder ao qual eu posso oferecer sincera obediência; a decisão de meu próprio discernimento, os ditames de minha própria consciência”. A simpatia de Godwin pelo seu próprio discernimento e pela sua consciência, assim como a condenação de Proudhon da “mão” que ameaça restringir a sua liberdade, deu ao anarquismo um impulso bastante individualista.
Por mais atraentes que sejam — e nos Estados Unidos estas afirmações conquistaram considerável admiração da direita que vem sendo chamada de “libertária” (e que deveria ser chamada de proprietária),[3] defensora de uma economia “livre” — essas afirmações revelam um anarquismo em conflito consigo mesmo. Em diferentes termos, Mikhail Bakunin e Piotr Kropotkin defenderam perspectivas essencialmente coletivistas — no caso de Kropotkin, explicitamente comunistas. Bakunin priorizava, enfaticamente, o social sobre o indivíduo. A sociedade, escreve ele,
precede todos os indivíduos e, ao mesmo tempo, sobrevive a todo indivíduo humano, sendo, a este respeito, como a própria natureza. Ela é eterna como a natureza, ou melhor dizendo, tendo nascido sobre a nossa Terra, ela durará tanto quanto a Terra. Uma revolta radical contra a sociedade seria, portanto, tão impossível ao homem quanto uma revolta contra a natureza, sendo a sociedade humana nada mais que a última grande manifestação ou criação da natureza nesta Terra. E um indivíduo que queira rebelar-se contra a sociedade […] colocar-se-á além dos limites da existência real.[4]
Bakunin expressou muitas vezes sua oposição às tendências individualistas do liberalismo e do anarquismo, por meio de uma considerável e polêmica ênfase. Apesar de a sociedade “dever-se aos indivíduos”, escreveu ele, numa afirmação relativamente branda, a formação do indivíduo é social.
Mesmo o indivíduo mais imprestável de nossa atual sociedade não poderia existir e desenvolver-se sem os esforços sociais cumulativos de incontáveis gerações. Assim, o indivíduo, sua liberdade e sua razão são produtos da sociedade, e não o contrário: a sociedade não é o produto dos indivíduos que a compõem; quanto mais elevada e plenamente o indivíduo desenvolver-se, maior será sua liberdade — e quanto mais ele for o produto da sociedade, mais ele receberá dela e maior será sua dívida com ela.[5]
Kropotkin, por sua vez, preservou esta ênfase coletivista, com notável consistência. Naquele que foi, provavelmente, seu texto mais lido, o verbete “Anarchism” da Encyclopaedia Britannica, Kropotkin situou as concepções econômicas do anarquismo à “esquerda” de “todos os socialismos”, por reivindicarem a abolição radical da propriedade privada e do Estado, no “espírito da iniciativa local, pessoal e da livre federação, estabelecida do simples ao complexo, em vez da presente hierarquia, que vai do centro à periferia”. As obras de Kropotkin sobre a ética possuem uma crítica constante aos esforços liberais de contrapor o indivíduo à sociedade, em termos mais concretos, uma crítica à subordinação da sociedade ao indivíduo ou ao ego. Ele colocou-se, de maneira bastante precisa, como parte da tradição socialista. Seu anarcocomunismo, que se baseava nos avanços da tecnologia e no aumento de produtividade, tornou- -se uma ideologia libertária preponderante na década de 1890, abrindo caminho entre as noções coletivistas de distribuição baseadas na equidade. Os anarquistas, “assim como a maioria dos socialistas”, enfatizou Kropotkin, reconheciam a necessidade de “períodos de evolução acelerada, chamados de revoluções”, produzindo, enfim, uma sociedade baseada nas federações de “todas as municipalidades ou comunas dos grupos locais de produtores e consumidores”.[6]
Com a emergência do anarcossindicalismo e do anarcocomunismo, nos fins do século XIX e início do século XX, a necessidade de se resolver a tensão entre as tendências individualista e coletivista tornou-se obsoleta.[7] O anarcoindividualismo foi, em grande medida, marginalizado pelos movimentos operários — organizações socialistas de massas —, dos quais muitos anarquistas consideravam-se a esquerda. Em uma época de violentos confrontos sociais — marcada pelo surgimento de um movimento de massas da classe trabalhadora, que teve seu auge nos anos 1930, durante a Revolução Espanhola —, os anarcossindicalistas e os anarcocomunistas, assim como os marxistas, consideravam o anarcoindividualismo um exotismo pequeno-burguês. Atacavam-no, com frequência, de maneira bastante direta, acusando-o de ser um capricho da classe média, muito mais radicado no liberalismo do que no anarquismo.
O período mal permitiu aos individualistas, em nome de suas “unicidades”, ignorarem a necessidade de formas de organização realmente revolucionárias, com programas coerentes e persuasivos. Longe de endossar a metafísica do único [ego] de Max Stirner[8] e sua “unicidade”, os militantes anarquistas precisavam de uma literatura básica, que fosse programática, discursiva e teórica, o que foi realizado por livros como A conquista do pão, de Kropotkin (Londres, 1913); O organismo econômico da revolução, de Diego Abad de Santillán (Barcelona, 1936); e The Political Philosophy of Bakunin, de G. P. Maximoff.[9] Pelo que sei, nenhuma “união dos egoístas” stirneriana jamais chegou a ter qualquer destaque — mesmo admitindo que essa união pudesse existir e sobreviver às “unicidades” de seus egocêntricos participantes.
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[3] Tradição ultraliberal dos Estados Unidos também conhecida por libertarianismo ou libertarismo. Defende o pensamento liberal clássico, reforçando valores como a propriedade privada e as liberdades civis. É contra o Estado (principalmente no que diz respeito à intervenção estatal), mas não contra o capitalismo. Seus defensores são chamados nos eua de “libertários de direita” ou “anarcocapitalistas”. [N. do T.]
[4] G. P. Maximoff (org.). The Political Philosophy of Bakunin. Glencoe: Free Press, 1953, p. 144.
[5] Ibidem, p. 158.
[6] Peter Kropotkin. “Anarchism” (artigo da Encyclopaedia Britannica). In: Roger N. Baldwin (org.). Kropotkin’s Revolutionary Pamphlets. Nova York: Dover Publications, 1970, pp. 285–287
[7] O anarcossindicalismo remonta, na verdade, às noções de “grande feriado” ou de greve geral, propostas pelos cartistas ingleses. Entre os anarquistas espanhóis, ele já era uma prática aceita desde os anos 1880; mais ou menos uma década antes de ser conceituado como doutrina na França.
[8] Traduziremos o termo inglês “ego” ora como “ego”, ora como “único”. A obra de Max Stirner, originalmente escrita em alemão (Der Einzige und sein Eigentum), utiliza o termo “único” (Einzige) e não “ego”. No entanto, o nome do livro de Stirner em inglês é The Ego and His Own, o que modifica o substantivo “único” para “ego”, já que o termo “unique”, “único”, em inglês, serve apenas como adjetivo. Portanto, ainda que Bookchin utilize sempre o termo “ego”, quando se tratar das referências a Stirner faremos a tradução como “único”, conforme o livro em português. Max Stirner. O único e sua propriedade (trad. João Barrento). São Paulo: Martins Fontes, 2009). [N. do T.]
[9] Publicado em inglês em 1953, três anos após a morte de Maximoff ; a data da compilação original, não disponível na tradução para o inglês, pode ser de anos ou mesmo de décadas antes.