Anarquismo Místico ou Irracionalista
Anarquismo Místico ou Irracionalista
Murray Bookchin
A TAZ de Bey não está sozinha em sua atração pela magia e até pelo misticismo. Com sua mentalidade edênica, muitos anarquistas de estilo de vida afeiçoam-se, com facilidade, ao antirracionalismo em suas formas mais atávicas. Consideremos o artigo “The Appeal of Anarchy”, que ocupa uma página inteira de um número recente da Fifth Estate (verão de 1989). “A anarquia”, lemos, reconhece “a iminência da libertação total [nada menos!] e como um sinal de sua liberdade, a nudez em seus ritos”. Entregue-se “à dança, ao canto, ao riso, aos banquetes, ao jogo”, ordenam-nos — e, exceto um pedante mumificado, quem se manifestaria contra esses deleites rabelaisianos?
Porém, infelizmente há um empecilho. A Abadia de Thélème de Rabelais,[38] que Fifth Estate parece imitar, era repleta de empregados, cozinheiros, cavalariços e artesãos, e sem seu duro trabalho os aristocratas autoindulgentes, com sua utopia claramente elitista, teriam passado fome e amontoado-se nus nas diferentes e frias salas da Abadia. Na verdade, é possível que esse “Appeal of Anarchy” da Fifth Estate tenha em mente uma versão materialmente mais simples da Abadia de Thélème: seus “banquetes” devem referir-se mais a tofu e arroz do que a perdizes recheadas e saborosas trufas. Porém, mesmo assim — sem maiores avanços tecnológicos para libertar as pessoas do trabalho árduo, ainda que seja para que tenham arroz e tofu à mesa —, como uma sociedade baseada neste tipo de anarquia espera “abolir toda autoridade”, “compartilhar coisas”, e que as pessoas banqueteiem e corram nuas, dançando e cantando?
Esta questão é particularmente relevante para o grupo da Fifth Estate. O que pode ser visto no periódico é o culto anticivilizador, antitecnológico, pré-racional e primitivista, presente na essência de seus artigos. Assim, o “Appeal” da Fifth Estate convida os anarquistas a “lançarem-se no círculo mágico, entrarem no transe do êxtase, divertirem-se na magia que dissipa todo poder” — justamente as técnicas mágicas que os xamãs (que pelo menos um de seus escritores reivindica) da sociedade tribal, sem falar nos sacerdotes das sociedades mais desenvolvidas, costumam usar há séculos para elevar-se à posição de hierarcas, contra as quais a razão teve de lutar muito para libertar a mente humana das mistificações por ela criadas. “Dissipar todo poder”? Novamente, há aqui um toque de Foucault, que, como sempre, nega a necessidade de estabelecer instituições autogeridas empoderadas, capazes de se contrapôr ao poder real das instituições capitalistas e hierárquicas — para a verdadeira criação de uma sociedade em que o desejo e o êxtase possam concretizar-se genuinamente, nos marcos de um comunismo libertário.
O louvor à “anarquia”, ilusoriamente “extático” e privado de conteúdo social, da Fifth Estate — desconsiderando toda sua retórica —, poderia, com facilidade, aparecer em um cartaz nas paredes de uma butique chique, ou no verso de um cartão de festas. Amigos que visitaram Nova York recentemente me disseram que, de fato, existe um restaurante com toalhas de linho, pratos caros e clientela yuppie, no St. Mark’s Place, Lower East Side — uma trincheira dos anos 1960 —, chamado Anarchy. Esse comedouro da pequena burguesia da cidade ostenta uma reprodução do famoso mural italiano Il Quarto Stato (1901), de Giuseppe Pellizza da Volpedo, que mostra os trabalhadores insurretos do fin de siècle marchando combativamente contra chefes, ou talvez uma delegacia de polícia, que não aparecem na gravura. O anarquismo de estilo de vida, pelo visto, pode vir a ser, cada vez mais, uma sensibilidade na escolha do consumidor. O restaurante, disseram-me, tem seguranças; deve ser para afastar do local as pessoas que aparecem estampadas na parede.
Seguro, privativo, hedonista e até mesmo aconchegante, o anarquismo de estilo de vida pode perfeitamente produzir a verborreia necessária para apimentar as vidas burguesas triviais de rabelaisianos tímidos. Como a “arte situacionista”, que o MIT exibiu para deleite da vanguarda da pequena burguesia alguns anos atrás, isso oferece pouco mais do que uma imagem terrivelmente “ruim” do anarquismo — ouso dizer, um simulacro — como todas aquelas que foram forjadas de leste a oeste nos EUA. A indústria do êxtase, no que lhe diz respeito, vai muito bem sob o capitalismo contemporâneo e poderia, facilmente, absorver as técnicas dos anarquistas de estilo de vida para evidenciar uma imagem vendável de desobediência. A contracultura, que outrora chocou a pequena burguesia com seus cabelos longos, barbas, roupas, liberdade sexual e arte, foi ofuscada há tempos por empresários burgueses cujos cafés, butiques, clubes e até campos de nudismo estão se tornando prósperos negócios, conforme testemunham os excitantes anúncios de novos “êxtases” no Village Voice[39] e nos periódicos similares.
Os sentimentos brutalmente antirracionais da Fifth Estate têm implicações muito problemáticas. Sua celebração visceral da imaginação, do êxtase e da “primalidade” evidentemente impugnam não apenas a eficiência racionalista, mas a própria razão enquanto tal. A capa da edição do outono/inverno de 1993 exibe o famoso e mal-entendido Capricho nº 43, de Francisco Goya, “El sueño de la razón produce monstruos” (O sono da razão produz monstros). A pessoa adormecida da imagem de Goya aparece debruçada em uma mesa diante de um computador Apple. A tradução para o inglês da legenda de Goya, elaborada pela Fifth Estate, coloca: “O sonho da razão produz monstros”, sugerindo que os monstros são produtos da própria razão. Na realidade, Goya quis dizer, como suas próprias notas indicam, que os monstros na gravura são produzidos pelo sono, e não pelo sonho, da razão. Como ele mesmo escreveu: “A fantasia abandonada pela razão produz monstros impossíveis; unida a ela, é a mãe das artes e a origem das maravilhas”.[40] Ao desconsiderar a razão, este incerto periódico anarquista entra em concordância com alguns dos mais sinistros aspectos da reação neoheideggeriana de hoje em dia.
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[38] Abadia da obra de François Rabelais, Gargantua. [N. do T.]
[39] Principal agenda cultural de Nova York. [N. do T.]
[40] Cf. Jose Lopez-Rey. Goya’s Capriccios: Beauty, Reason and Caricature, vol. 1. Priceton: Priceton University Press, 1953, pp. 80–81.