Anarquismo como Caos
Anarquismo como Caos
Murray Bookchin
Quaisquer que possam ser as preferências de Brown, seu livro reflete e estabelece as premissas para que os anarquistas euro-americanos afastem-se do anarquismo social e aproximem-se do anarquismo individualista ou de estilo de vida. Hoje, o anarquismo de estilo de vida encontra sua principal expressão no graffiti, no niilismo pós-modernista, no antirracionalismo, no neoprimitivismo, na antitecnologia, no “terrorismo cultural” neossituacionista, no misticismo e na “prática” de encenação das “insurreições pessoais” foucaultianas.
Essas posturas modernas e vaidosas, quase todas resultado de uma moda yuppie, são individualistas principalmente por serem antitéticas ao desenvolvimento de organizações sérias, de uma política radical, de um movimento social comprometido, de coerência teórica e de relevância programática. Mais voltada à busca da “autorrealização” do que das transformações sociais fundamentais, essa tendência entre os anarquistas de estilo de vida é nociva, na medida em que seu “virar-se para dentro”, utilizando a expressão de Katinka Matson, reivindica ser política — ainda que isso se assemelhe à “política da experiência” de R. D. Laing. A bandeira negra — que os revolucionários do anarquismo social levantaram nas lutas insurrecionais na Ucrânia e na Espanha — torna-se agora um “sarongue” [25] da moda, para deleite de uma chique pequena burguesia.
Um dos exemplos mais enfadonhos do anarquismo de estilo de vida é a TAZ de Hakim Bey[26] (também conhecido como Peter Lamborn Wilson). Zona autônoma temporária é uma jóia da New Autonomy Series (a escolha do nome não é acidental), publicada pela pósmodernista Semiotext(e) / Grupo Autonomedia do Brooklin.[27] No meio de sua invocação do “caos”, do “amor louco”, das “crianças selvagens”, do “paganismo”, da “sabotagem artística”, das “utopias piratas”, da “magia negra como ação revolucionária”, do “crime” e da “bruxaria”, sem falar nos elogios ao “marxismo-stirnerianismo”, o chamado à autonomia é levado a um nível tão absurdo, que aparentemente parodia uma ideologia autoabsorvida e autoabsorvente.
TAZ apresenta-se como um estado de espírito, um humor brutalmente antirracional e anticivilizador, no qual a desorganização é compreendida como forma de arte e o graffitti toma o lugar dos projetos. Bey (seu pseudônimo é a palavra turca para “chefe” ou “príncipe”) não mede palavras em seu desprezo pela revolução social:
Por que a preocupação de confrontar um “poder” que perdeu todo seu significado e tornou-se uma completa simulação? Tais confrontações apenas resultarão em perigos e horrendos espasmos de violência. [28]
Poder entre aspas? Uma mera “simulação”? Se o que acontece na Bósnia com toda aquela potência de fogo é uma mera “simulação”, então, realmente, estamos vivendo em um mundo muito seguro e confortável! O leitor preocupado com as crescentes patologias sociais da vida moderna pode confortar-se com o pensamento olímpico de Bey, que enfatiza: “o realismo exige não apenas que desistamos de esperar a ‘revolução’, mas também que desistamos de desejá-la” (TAZ, p. 101). Essa passagem nos incita a aproveitar a serenidade do nirvana? Ou uma nova “simulação” baudrillardiana? Ou, talvez, um novo “imaginário” castoriadiano?
Ao eliminar o objetivo revolucionário clássico de transformação da sociedade, Bey zomba daqueles que outrora arriscaram tudo por isso: “O democrata, o socialista, a ideologia racional […] são surdos para a música e carecem totalmente do senso de ritmo” (TAZ, p. 66). Será mesmo? O próprio Bey e seus coroinhas dominam a fundo os versos e a música da Marselhesa e dançam extasiados a Dança dos marinheiros russos, de Glière? Há uma fatigante arrogância no repúdio que Bey manifesta pela rica cultura criada pelos revolucionários ao longo dos últimos séculos, na realidade, por trabalhadores comuns que viveram no período pré-rock n’roll e pré-Woodstock.
Quem adentrar o mundo dos sonhos de Bey deve desistir dessa bobagem de compromisso social. “Um sonho democrático? Um sonho socialista? Impossível”, entoa Bey com arrogante certeza. “Em sonho, nada nos governa, a não ser o amor ou a feitiçaria” (TAZ, p. 64). Assim, os sonhos de um novo mundo evocados ao longo dos séculos por idealistas, e que tomaram corpo em grandes revoluções, são, de maneira magistral, reduzidos por Bey à sabedoria de seu próprio mundo de sonhos febris.
Quanto a um anarquismo “completamente coberto com o humanismo ético, o pensamento livre, o ateísmo muscular e a rude lógica cartesiana fundamentalista” (TAZ, p. 52) — esqueça! Bey não apenas desdenha da tradição iluminista, na qual o anarquismo, o socialismo e o movimento revolucionário estiveram outrora radicados, mas também mistura a “lógica cartesiana fundamentalista” com o “pensamento livre” e o “humanismo”, como se estes fossem conceitos substituíveis um pelo outro, ou que, necessariamente, um implicasse o outro.
Ainda que Bey nunca hesite em emitir pronunciamentos olímpicos e levantar polêmicas petulantes, ele diz não ter paciência para “os barulhentos ideólogos do anarquismo e do libertarianismo” (TAZ, p. 46). Proclamando que a “anarquia não conhece dogmas” (TAZ, p. 52), Bey, entretanto, faz seus leitores chafurdarem sob o peso de um severo dogma: “Anarquismo, em última análise, implica a anarquia — e a anarquia é o caos” (TAZ, p. 64). Assim disse o Senhor: “Eu sou aquele que é” — e Moisés tremeu diante da palavra!
Na realidade, em um acesso maníaco de narcisismo, Bey determina que ele é o que tudo tem, o gigantesco “eu”, o grande “eu” soberano: “cada um de nós determina nossa própria humanidade, nossa própria criação — e tudo o mais que quisermos agarrar e absorver.” Para Bey, anarquistas e reis — e também os beys — tornam-se indistinguíveis, visto que todos são autarcas.
Nossas ações são justificadas por decreto e nossas relações são moldadas por tratados estabelecidos com outros autarcas. Nós fazemos a lei para os nossos próprios domínios — e os grilhões da lei foram quebrados. No momento, talvez sobrevivamos como meros fingidores — mas, mesmo assim, podemos aproveitar alguns poucos instantes, uns poucos metros quadrados de realidade sobre a qual impomos nosso absoluto desejo, nosso royaume. L’etat, c’est moi…[29] Se somos limitados por qualquer ética ou moralidade, elas devem ter sido imaginadas por nós mesmos.[30]
L’Etat, c’est moi? Além dos beys, posso pensar em pelo menos duas outras pessoas do século XX que desfrutaram dessas ambiciosas prerrogativas: Josef Stalin e Adolf Hitler. A maioria de nós mortais, sem distinção entre ricos e pobres, como colocou uma vez Anatole France, é proibida, da mesma maneira, de dormir sob as pontes do Sena. Na realidade, se Sobre a autoridade, de Friedrich Engels, com sua defesa da hierarquia, representa uma forma burguesa de socialismo, TAZ e suas ramificações representam uma forma burguesa de anarquismo. “Não há transformação”, nos diz Bey,
não há revolução, luta, caminho; [se] você já é o seu próprio monarca — sua inviolável liberdade aguarda ser completada apenas pelo amor de outros monarcas: uma política do sonho, indispensável como o azul do céu.[31]
Palavras que poderiam ser inscritas na Bolsa de Valores de Nova York como uma crença no egoísmo e na indiferença social.
É certo que essa posição não terá muito mais objeções nas butiques da “cultura” capitalista do que as barbas, os cabelos compridos e os jeans tiveram no mundo empresarial da alta moda. Infelizmente, muitas pessoas neste mundo — e não “simulações” ou “sonhos” — não possuem nem sequer a si mesmas, como atestam, no mais concreto dos termos, os prisioneiros que são forçados a trabalhar e as prisões. Ninguém jamais pairou fora da miséria terrestre, em “uma política dos sonhos”, exceto os privilegiados pequeno-burgueses, que devem levar a sério os manifestos de Bey, em especial nos momentos de tédio.
Para Bey, mesmo as insurreições revolucionárias clássicas mostram pouco mais do que uma euforia pessoal, perfumada com as “experiências-limite” de Foucault. “Uma revolta é como uma ‘experiência máxima’”, declara ele (TAZ, p. 100). Historicamente, “alguns anarquistas […] participaram de diversas revoltas e revoluções, mesmo naquelas comunistas e socialistas”, mas isso aconteceu
porque eles encontraram no próprio momento da insurreição o tipo de liberdade que buscavam. Assim, ao passo que o utopismo vem fracassando constantemente, os anarquistas individualistas ou existencialistas vêm tendo êxito, visto que têm conseguido (ainda que brevemente) a realização de sua vontade de poder na guerra.[32]
O levante dos trabalhadores austríacos em fevereiro de 1934 e a Guerra Civil Espanhola em 1936, posso afirmar, foram mais do que orgiásticos “momentos de insurreição”. Foram lutas severas, levadas a cabo com desesperada seriedade e magnífico ímpeto, ainda que ambas tenham sido epifanias estéticas.
Contudo, a insurreição torna-se, para Bey, pouco mais do que uma “viagem” psicodélica, e o super-homem de Nietzsche, o qual ele aprova, constitui um “espírito livre” que iria “desdenhar da perda de tempo com agitações por reformas, com protestos, com sonhos visionários e com todo tipo de ‘martírio revolucionário’”. Aparentemente, os sonhos são admissíveis, desde que não sejam “visionários” (leia-se: comprometidos socialmente). Bey tem outras preferências: “beberia vinho” e atingiria uma “epifania privada” (TAZ, p. 88), o que sugere algo não muito distinto da masturbação mental, certamente libertada da coação da lógica cartesiana.
Não nos deveria surpreender o fato de Bey endossar as ideias de Max Stirner, que “não se compromete com a metafísica, ainda que conceda ao único (ou seja, o ego) um certo poder absoluto” (TAZ, p. 68). Na verdade, Bey constata que existe um “ingrediente faltante em Stirner”: “um conceito funcional de consciência não ordinária” (TAZ, p. 68). Tudo indica que Stirner é racionalista demais para Bey.
O Oriente, o oculto, as culturas tribais possuem técnicas que podem ser “apropriadas” à verdadeira moda anarquista. […] Precisamos de um tipo prático de “anarquismo místico”, […] uma democratização do xamanismo, embriagado e sereno.[33]
Por isso, Bey conclama seus discípulos a tornarem-se “feiticeiros” e sugere que utilizem a “maldição malaia do djinn negro”.
O que, afinal, é uma “zona autônoma temporária”?
A TAZ é um tipo de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e dissolve-se para se refazer, em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la.[34]
Em uma TAZ, podemos “realizar muitos dos nossos verdadeiros desejos, mesmo que apenas por uma temporada, uma breve utopia pirata, uma zona livre no velho contínuo tempo/espaço” (TAZ, p. 62). “TAZs em potencial” incluem “a ‘reunião tribal’ dos anos 60, o conclave florestal de ecossabotadores, o Beltane[35] idílico dos neopagãos, as conferências anarquistas, as festas gays”, isto sem falar nas “casas noturnas, banquetes” e nos “piqueniques dos antigos libertários” — nada menos (TAZ, 73 p. 100). Eu, como membro da Libertarian League dos anos 1960, adoraria ver Bey e seus discípulos aparecerem em um “piquenique dos antigos libertários”!
A TAZ é tão passageira, tão evanescente, tão inefável — em contraste com o Estado e com a burguesia, que são tão estáveis — de maneira que “assim que a TAZ é nomeada [… ] ela deve desaparecer, ela vai desaparecer [… ] e brotará de novo em outro lugar” (TAZ, p. 101). A TAZ, portanto, não é uma revolta, mas uma simulação, uma insurreição igualmente vivida na imaginação de um cérebro juvenil, uma retirada segura para a irrealidade. Certamente, declama Bey: “Nós a recomendamos [a TAZ], pois ela pode fornecer a qualidade do enlevamento, sem necessariamente[!] levar à violência e ao martírio” (TAZ, p. 101). Mais precisamente um happening de Andy Warhol, a TAZ é um evento passageiro, um orgasmo momentâneo, uma expressão fugaz da “força de vontade” que é, na realidade, uma evidente impotência em relação à sua capacidade de deixar qualquer marca na personalidade, na subjetividade ou mesmo na autoformação do indivíduo, impotência ainda maior para a modificação dos fatos ou da realidade.
Dada a evanescente qualidade de uma TAZ, os discípulos de Bey podem aproveitar o privilégio passageiro de viver uma “vida nômade”, visto que “‘não ter teto’ pode, num certo sentido, ser uma virtude, uma aventura” (TAZ, p. 130). Infelizmente, “não ter teto” pode ser uma “aventura” quando se tem um confortável lar para o qual retornar. E nesse sentido, o nomadismo é um típico luxo daqueles que podem viver sem trabalhar para seu sustento. A maioria dos sem-teto “nômades”, dos quais me lembro bem na época da Grande Depressão, tinha vidas sofridas, desesperando-se por conta da fome, das doenças e da indignidade, e morrendo diversas vezes prematuramente — como ainda hoje acontece nas ruas das cidades da América. Os poucos ciganos que parecem gostar da “vida na estrada” são, na melhor das hipóteses, idiossincráticos e, na pior, tragicamente neuróticos. Também não posso ignorar outra “insurreição” defendida por Bey: em especial, o “analfabetismo voluntário” (TAZ, p. 129). Embora ele o promova como uma revolta contra o sistema educacional, seu efeito mais desejável talvez seja, realmente, tornar suas injunções ex cathedra inacessíveis a seus leitores.
Talvez não haja descrição melhor da mensagem de TAZ do que aquela que foi publicada na Whole Earth Review, na qual o autor enfatiza que o panfleto de Bey está “rapidamente se tornando a bíblia da contracultura dos anos 1990 […]. Ainda que muitos conceitos de Bey tenham afinidade com as doutrinas do anarquismo”, a Review declara a sua clientela de yuppies que ele
intencionalmente abandona a tradicional retórica de derrubar o governo. Em vez disso, ele prefere a natureza mercurial das “revoltas”, que proporcionariam “momentos de intensidade [que poderiam] dar forma e significado à totalidade da vida”. Esses pequenos espaços de liberdade, ou zonas autônomas temporárias, possibilitam ao indivíduo esquivar-se das esquemáticas grades do big government [36] e ocasionalmente viver em locais onde se possa experimentar, brevemente, a liberdade total. (Grifos meus) [37]
Há uma palavra iídiche intraduzível para tudo isso: nebbich! Durante os anos 1960, o grupo de afinidades Up Against the Wall Motherfuckers propagou esses mesmos elementos de confusão, desorganização e “terrorismo cultural”, e logo em seguida desapareceu da cena política. Na realidade, alguns de seus membros entraram para o mundo comercial, profissional e de classe média, que outrora desprezavam. Comportamento este que não é exclusivamente americano. Assim como um francês, “veterano” do Maio-Junho de 1968, cinicamente colocou: “Tivemos nossa diversão em 68 e agora é hora de crescer”. O mesmo ciclo mortal, com “As” circulados, repetiu-se durante uma revolta individualista de jovens de Zurich, em 1984, que terminou com a criação do Needle Park, um local para utilização de cocaína e crack estabelecido pelas autoridades municipais, permitindo que os jovens viciados destruíssem a si mesmos dentro da lei.
A burguesia realmente não tinha motivos para temer essas declamações de estilo de vida. Com a sua aversão pelas instituições, pelas organizações de massas, com sua orientação em grande medida subcultural, sua decadência moral, sua celebração da transitoriedade e sua rejeição dos programas, esse tipo de anarquismo narcisista é socialmente inócuo e, com frequência, apenas uma válvula de escape segura para o descontentamento com a ordem social dominante. Com Bey, o anarquismo de estilo de vida foge de toda militância social significativa e do firme compromisso com os projetos duradouros e criativos, dissolvendo-se nas queixas, no niilismo pós-modernista e em um confuso sentido nietzschiano de superioridade elitista.
O anarquismo pagará caro se permitir que este absurdo substitua os antigos ideais libertários. O anarquismo egocêntrico de Bey — com sua reivindicação pós-modernista da “autonomia” individual, das “experiências-limite” foucaultianas e do êxtase neossituacionista — ameaça tornar o anarquismo inofensivo, em termos políticos e sociais, transformando-o em um simples modismo para o gozo de pequeno-burgueses de todas as idades.
***
[25] Pano usado como vestuário pelos habitantes da Malaia. [N. do T.]
[26] Edição brasileira: Hakim Bey. Taz (trad. Renato Rezende e Patricia Decia). São Paulo: Conrad, 2001. [N. do T.]
[27] Hakim Bey. TAZ: The Temporary Autonomous Zone, Ontological Anarchism, Poetic Terrorism. Nova York: Autonomedia, 1985, 1991. O individualismo de Bey pode muito bem lembrar aquele do final da vida de Fredy Perlman e o de seus acólitos anticivilizatórios e primitivistas da Fifth Estate de Detroit, com a exceção de que TAZ, de modo um tanto confuso, clama por um “paleolitismo psíquico baseado na alta tecnologia” (p. 44).
[28] Ibidem, p. 128
[29] Royaume: reino, em francês no original. L’etat, c’est moi: eu sou o Estado, em francês no original. [N. do T.]
[30] Hakim Bey. Op. cit., p. 67.
[31] Ibidem, p. 4.
[32] Ibidem, p. 88.
[33] Ibidem, p. 63.
[34] Ibidem, p. 101
[35] Maio, em irlandês antigo, mês da primavera celebrado pelos celtas. [N. do T.]
[36] Termo usado nos Estados Unidos para descrever a política do Estado forte e grande. [N. do T.]
[37] “TAZ”. In: The Whole Earth Review, 1994, p. 61