Wayne Price. “Um Ataque Maoísta ao Anarquismo”

UM ATAQUE MAOÍSTA AO ANARQUISMO

Uma resposta anarquista à Bob Avakian, MLM vs Anarquismo

Wayne Price

 

Nos anos 60 e 70, o maoísmo foi uma grande corrente de esquerda internacional. Hoje sua influência está muito reduzida. Em grande medida, seu nicho de extrema esquerda foi ocupado pelo anarquismo. Só conheço uma resposta teórica a esta situação, que é o panfleto MLM [Marxismo-Leninismo-Maoísmo] vs. Anarquismo, escrito pelo Presidente do Partido Comunista Revolucionário (Revolutionary Communist Party) (EUA), Bob Avakian (o panfleto em si não tem data; é composto de artigos que Avakian escreveu para o jornal Revolutionary Worker em 1997). O RCP é o maior grupo maoísta ainda existente nos EUA e tem associações internacionais. Tem um culto em torno de Avakian, que não é apenas seu presidente. Ele é o LÍDER, constantemente referido na imprensa como o homem com todas as respostas, o gênio que entende o mundo e que conduzirá os oprimidos à terra prometida. Embora ele não fale por todos aqueles que se consideram maoístas, vale a pena olhar para o que ele chama de “nossa resposta fundamental ao anarquismo” (p. 2).

Avakian observa: “A maioria dos anarquistas realmente almeja algo muito aquém de realmente realizar a derrubada revolucionária da ordem existente e a transformação revolucionária da sociedade e do mundo como um todo” (p. 9). Isso é verdade, se não para a “maioria” dos anarquistas, então certamente para “muitos“. Avakian não considera diferenças entre anarquistas. Mas há anarquistas que visam a derrubada revolucionária da classe dominante e seu Estado e a transformação do mundo, que colocam a classe trabalhadora no centro de sua estratégia enquanto apoiam as lutas de todos os oprimidos (como as mulheres e as Pessoas de Cor), que são a favor da construção de organizações de anarquistas e da substituição do Estado por federações de conselhos e associações. É a partir dessa perspectiva revolucionária – na tradição do anarco-comunismo – que vejo o ensaio de Avakian.

Avakian começa tentando explicar a atração do anarquismo hoje. Ele cita Lenin para quem o anarquismo é “o pagamento pelos pecados de certo oportunismo” e acrescenta: “Pessoas honestas de mentalidade revolucionária foram atraídas para o anarquismo porque parecia mais revolucionário do que o marxismo” (p. 1). Ou seja, os radicais hoje olham para os socialdemocratas e para o Partido Comunista (e seus desdobramentos) e ficam enojados, então se voltam para o anarquismo. Isso é verdade. Por exemplo, agora muitos ativistas anti-guerra estão furiosos com a traição do sentimento anti-guerra do Partido Democrata no país, e com o ingresso do reformista Partido Socialista-Comunista no Partido Democrata. Essa raiva cria aberturas para o anarquismo.

No entanto, décadas se passaram desde que Lenin fez essa observação. Deveria ser óbvio que há outra razão agora porque “pessoas de mentalidade revolucionária foram atraídas para o anarquismo“. Este é o fato de que o marxismo-leninista teve sucesso em fazer revoluções, mas seus novos Estados tornaram-se pesadelos totalitários, exploradores capitalistas dos trabalhadores e assassinos em massa do povo. Para aqueles que não se deixaram abater por tal monstruosidade, houve o fracasso desse sistema, com o colapso da União Soviética e seus satélites, e a passagem da China do Capitalismo de Estado para uma economia abertamente orientada para o mercado. Foram esses eventos que levaram ao descrédito do marxismo-leninismo e à atual ascensão do movimento anarquista.

A PERSPECTIVA ANARQUISTA

Avakian levanta uma grande diferença entre o marxismo e o anarquismo, que, acredito, remonta a Marx. Esta é a “perspectiva anarquista” (p. 3) de descentralização e comunitarismo face a face, nosso desejo de quebrar este sistema supercentralizado de capitalismo estatista e substituí-lo por “pequenos grupos de pessoas que se juntaram para realizar produção e troca.” (p. 3) (Veja meu ensaio sobre Marx, centralismo e descentralismo, www.anarkismo.net). É verdade que os anarquistas defendem uma economia comunal descentralizada, horizontalizada, locais de trabalho democráticos e produção local. Mas Avakian exagera isso, visto que as perspectivas anarquistas sempre incluíram federações, regionais e internacionais, e a aceitação da centralização quando apropriado.

De qualquer modo, Avakian continua a acusar que esta perspectiva de descentralização é implicitamente “chauvinismo imperialista” (p. 2) dos países industrializados (imperialistas). O programa anarquista significaria “‘comunizar’ a pilhagem e exploração que foi realizada pelo imperialismo (…) ainda estaria ‘herdando’ forças vastas e altamente desenvolvidas que são, em um grau significativo, o fruto da exploração e pilhagem levada a cabo ao longo de décadas e séculos de dominação imperialista (…) para o benefício apenas do povo daquele país (anteriormente) imperialista …”(p. 3). O argumento de Avakian contra a descentralização não é que não funcionaria, mas que não deveria ser feito.

Ele tem outro argumento contra a descentralização. Ele escreve que não seria possível abolir imediata e completamente a produção de mercadorias e todas as trocas de mercado após uma revolução (aliás, essa não era a opinião de Karl Marx, expressa em A Crítica do Programa de Gotha. Ele pensava que haveria estágios inferiores e superiores do comunismo, mas que mesmo no estágio inferior, logo após uma revolução, haveria deixar de ser produção de mercadorias). Portanto, “se os meios de produção fossem de propriedade ou controlados por pequenos grupos de pessoas” (p. 4), eles acabariam trocando mercadorias no mercado. Isso só poderia levar ao renascimento, rápida ou lentamente, das relações capitalistas. Comunidades e empresas com vantagens se tornariam mais ricas que outras e alguns “pequenos grupos” se tornariam gerentes e finalmente proprietários da produção, explorando outros como trabalhadores.

Não surpreendentemente, para Avakian, a solução é o Estado – um “Estado socialista”, um “Estado operário”, uma “ditadura do proletariado”. “Esta é a única maneira que os interesses maiores da classe proletária, incluindo seu internacionalismo proletário, podem realmente encontrar expressão – e realmente serem implementados e, sim, reforçados, contra a oposição dos exploradores derrubados e outras forças reacionárias” (p. 4). Presumivelmente, esse Estado forçaria os produtores (se necessário, contra sua vontade) a enviar um excedente para as nações empobrecidas, antes oprimidas, para que pudessem se industrializar.

Da mesma forma, o Estado levaria a sociedade à força ao comunismo, por meio de um estágio de produção de mercadorias, sem restaurar o capitalismo. Seria a “personificação de interesses e, sim, de autoridade que é mais elevada do que os vários pequenos grupos diferentes e que pode, portanto, unificar as massas de pessoas em torno desses interesses mais elevados (p. 5)” (Estranhamente, ele não levanta os supostos benefícios do planejamento econômico centralizado).

Desde a época de Bakunin, os anarquistas revolucionários têm defendido a revolução mundial, o fim dos Estados Nacionais e o estabelecimento das federações internacionais. Os maoístas não têm nada a nos ensinar sobre o internacionalismo proletário. As revoluções nos EUA, Canadá ou Europa Ocidental sem dúvida começariam com certas vantagens devido à história de “pilhagem imperialista“. A primeira (e mais importante) coisa que fariam para ajudar as nações anteriormente oprimidas seria o fim desse imperialismo! Eles parariam de drenar a riqueza do resto do mundo. Eles não iriam mais insistir em patentes e direitos autorais sobre medicamentos e tecnologia contra as nações mais pobres. Eles não precisariam mais da exploração internacional para ter um nível de vida decente, uma vez que não gastariam mais trilhões de dólares em armamentos e outras formas de desperdício capitalista. Eles teriam interesse em ajudar os povos mais pobres a se industrializarem à sua maneira, pois isso impediria o renascimento do capitalismo internacional e das guerras nacionais. Finalmente, há uma grande quantidade de pesquisas e literatura sobre a industrialização descentralizada que se aplica diretamente ao chamado Terceiro Mundo (do Pequeno-é-Belo, tecnologia alternativa, pesquisadores como E.F. Schumacher).

Quanto a ir além da produção de mercadorias em uma economia comunal descentralizada, os trabalhadores não precisam de um Estado, mas de alguma forma de coordenação democrática de baixo para cima. É preciso haver federações e redes que possam criar um mecanismo de planejamento radicalmente democrático. Há toda uma literatura de sugestões de como isso pode ser organizado (por exemplo, Parecon), mas diferentes regiões podem experimentar métodos alternativos. Não há garantias, mas minha fé é que as pessoas que fizeram uma revolução socialista libertária seriam capazes, por tentativa e erro, de elaborar um sistema participativo, cooperativo e não mercantil.

O ESTADO DE AVAKIAN

Avakian declara que “nosso objetivo final (…) é abolir o Estado”(p. 7). Mas isso ainda não durará muito. Seu objetivo imediato é derrubar o Estado existente e criar um novo Estado. Este será um “Estado operário”. Isso não significa que o proletariado realmente existente, os verdadeiros trabalhadores, estará no comando. Seu programa nada tem em comum com o de Marx, que esperava que o Estado burguês fosse substituído por algo como a extremamente democrática Comuna de Paris (em A Guerra Civil na França). Em vez disso, o Estado de Avakian seria administrado por “um partido de vanguarda que representa a perspectiva revolucionária e os interesses do proletariado” (p. 7). O partido substituirá os trabalhadores. O partido determinará se “representa” os interesses dos trabalhadores. Será um Partido-Estado de partido único, mas os anarquistas terão permissão para fazer críticas limitadas que apontam as “deficiências” do partido no poder. Então, o partido pode se corrigir, se quiser. As “massas” serão inspiradas e mobilizadas pelo partido, mas não decidirão de fato seu programa.

Além disso, este Estado exigirá forças armadas centralizadas, ao contrário dos marxistas clássicos, bem como anarquistas, que defendiam uma milícia de trabalhadores, o povo armado. “… não foi possível abolir o exército permanente na sociedade socialista, como originalmente previsto por Marx e Engels e depois por Lenin (…) e (…) não será possível fazer isso por um período considerável” (p. 21).

Considerando as falhas históricas de tais Estados, Avakian tem que admitir alguns problemas com este programa. “…verdade (…) que as forças mais estrategicamente preparadas na sociedade socialista na busca de realizar a restauração do capitalismo são precisamente pessoas de alto escalão dentro do Estado socialista (e do partido de vanguarda…)” (p. 7). “(…) emergem de dentro do partido comunista os que assumem esta posição de se tornar uma nova camarilha governante e exploradora (p. 14)”. Isso torna todo o seu programa questionável.

Aparentemente, não há garantia de que a ditadura do Partido-Estado superará sua tendência de se tornar uma nova classe dominante (haverá fortes tendências nessa direção, diz Avakian), assim como não há garantia de que a perspectiva anarquista terá sucesso. Mas a perspectiva de Avakian depende da sabedoria de alguns líderes (ou um líder) para representar os interesses dos trabalhadores, enquanto a perspectiva do anarquismo revolucionário depende do potencial de autogoverno entre os trabalhadores e oprimidos.

Avakian argumenta que não pode haver uma revolução sem um “partido de vanguarda“. Muitos anarquistas acreditam que devemos criar uma organização revolucionária para lutar por nossas ideias por meio de argumentos e exemplos. Isso faz parte do processo de auto-organização da nossa classe. Mas não pretendemos tomar o poder e governar as massas operárias e oprimidas, ou seja, não somos um partido de vanguarda. Não buscamos nos “tornar uma nova camarilha governante e exploradora”.

Para justificar o Estado autoritário e o partido que ele defende, Avakian cita a divisão “entre trabalho manual e intelectual” (p. 27). Sem dúvida, este “problema mental / manual” foi criado pelo capitalismo e não terminará imediatamente com a derrubada do capitalismo. Avakian dá uma explicação marxista completa de porque os profissionais especializados deveriam continuar a receber salários mais altos sob o socialismo devido à sua maior quantidade de treinamento (que produz um maior valor de troca para seu trabalho). Seja como for, os anarquistas argumentam que, após uma revolução, os trabalhadores deveriam começar imediatamente a reorganizar o processo de produção para se livrar da divisão entre quem manda e quem obedece. Isso não é algo a ser adiado para um futuro distante, mas deve começar a ser trabalhado imediatamente.

 

ANÁLISE DE CLASSE DO ANARQUISMO E DO MAOÍSMO

Como outros marxistas, Avakian afirma, “(…) anarquismo como um programa e perspectiva é, em última análise, a expressão dos interesses pequeno-burgueses (…)” (p. 9). O que essa acusação significa? Seria difícil demonstrar que a composição de classes da minha organização anarquista é muito diferente, mais de classe média (ou baseada em pequenos negócios) do que o RCP maoísta. Ou que os sindicatos anarquistas-sindicalistas são menos da classe trabalhadora do que algumas organizações maoístas. Mas, para Avakian, a natureza da classe não é realmente uma questão de composição, mas de “linha“. O RCP é “proletário” devido à sua política correta e os anarquistas são “pequeno burgueses” devido à nossa política ruim.

Claro, ele afirma que o programa dos maoístas realmente promove os interesses dos trabalhadores, assim como nosso programa supostamente promove os interesses da classe média. Mas isso é algo que precisa ser demonstrado por argumentos (e na prática), não por asserção. Caso contrário, isso é apenas xingamento. Seu único argumento é que descentralização significa produção em pequena escala, supostamente pequeno-burguesa. Não consigo ver a natureza pequeno-burguesa das comunas coletivizadas, a gestão operária da indústria e o planejamento democrático de baixo para cima de uma economia sem mercado.

Qual é a natureza de classe no programa de Avakian? Ele deseja criar uma nova sociedade na qual continue a haver (por um período indefinido) uma divisão mental / manual, produção de mercadorias, dinheiro, um Estado, um exército permanente centralizado, um partido que dá ordens aos trabalhadores que ficam em suas fábricas recebendo demandas. Este é um programa para dar continuidade à relação capital / trabalho na forma capitalista de Estado. Os maoístas procuram usar a classe trabalhadora e os camponeses como um aríete para esmagar a velha classe dominante. Então, eles pretendem substituir os antigos governantes capitalistas, tornando-se os novos governantes. Hoje eles estão construindo um partido no qual Avakian e seus asseclas mais próximos são os chefes das fileiras da classe trabalhadora. Amanhã eles esperam criar um Estado no qual comandem toda a sociedade. É a quintessência do sonho da classe média (pequeno-burguês) de se tornar membro da classe dominante. Devemos trabalhar para garantir que isso não aconteça.

Com os maoístas levantando esse programa capitalista de Estado, não é surpreendente que, como diz Avakian, “pessoas honestas com mentalidade revolucionária foram atraídas para o anarquismo porque parecia mais revolucionário do que o marxismo” (p. 1).

10 de Maio de 2009

Fonte: https://theanarchistlibrary.org/library/wayne-price-a-maoist-attack-on-anarchism
Original: http://www.anarkismo.net/article/5847
Tradução do Inglês ao Português: Arthur Castro