Contra Tecnologia e Civilização

Contra Tecnologia e Civilização

Murray Bookchin

Ainda mais problemáticos são os escritos de George Bradford (também conhecido como David Watson), um dos maiores teóricos da Fifth Estate, sobre os horrores da tecnologia — aparentemente da tecnologia como tal. A tecnologia, ao que parece, determinaria as relações sociais ao invés do oposto, uma noção que se aproxima mais estritamente do marxismo do que da ecologia social. “A tecnologia não é um projeto isolado, nem mesmo uma acumulação de conhecimento técnico”, nos diz Bradford em “Stopping the Industrial Hydra” (SIH),

que é determinado por uma esfera de alguma forma separada e mais fundamental das “relações sociais”. As técnicas de massa tornaram- -se, nas palavras de Langdon Winner, “estruturas cujas condições de funcionamento exigem a reestruturação de seus ambientes”, e, deste modo, das verdadeiras relações sociais que as envolvem. As técnicas de massa — produtos de formas mais antigas e de hierarquias arcaicas — têm superado as condições que as criaram, adquirindo uma vida autônoma. [… ] Elas promovem, ou têm se tornado, um tipo de ambiente total e de sistema social, tanto em seus aspectos gerais, quanto individuais e subjetivos. […] Em tal pirâmide mecânica […] as relações instrumentais e sociais são a mesma coisa.[41]

Esta medíocre ideia ignora, confortavelmente, as relações capitalistas que determinam, ostensivamente, como a tecnologia será utilizada e enfatiza aquilo que a tecnologia supostamente é. Desconsiderando absolutamente as relações sociais — em vez de enfatizar o importantíssimo processo produtivo para o qual a tecnologia é utilizada —, Bradford dá às máquinas e às “técnicas de massa” uma autonomia mística e, assim como a hipostasia stalinista da tecnologia, serve para fins extremamente reacionários. A ideia de que a tecnologia tem vida própria está muito arraigada no romantismo conservador alemão do século XIX e nos escritos de Martin Heidegger e Friedrich Georg Jünger, que alimentaram a ideologia nacional-socialista, por mais que os nazistas exaltassem sua ideologia antitecnológica.

Vista em termos da ideologia contemporânea de nosso tempo, esta bagagem ideológica é caracterizada pela reivindicação, tão comum, de que as máquinas automatizadas desenvolvidas recentemente, de várias maneiras, custam às pessoas seus empregos ou intensificam sua exploração — ambos são, sem dúvidas, fatos, mas que estão vinculados necessariamente às relações sociais da exploração capitalista, e não aos avanços tecnológicos em si mesmos. Indo direto ao ponto: as demissões hoje não estão sendo levadas a cabo pelas máquinas, mas por burgueses avarentos que utilizam as máquinas para substituir a mão de obra humana ou para explorá-la mais intensamente. [42] Na realidade, as mesmas máquinas que os burgueses utilizam para reduzir “custos do trabalho” poderiam, em uma sociedade racional, libertar os seres humanos dos trabalhos pesados e estúpidos, possibilitando as atividades criativas e pessoalmente gratificantes. Não há evidência de que Bradford esteja familiarizado com Heidegger ou Jünger; ele parece inspirar-se em Langdon Winner e Jacques Ellul, o qual é endossado por Bradford:

É a coerência tecnológica que cria a coerência social. […] A tecnologia é, em si mesma, não só um meio, mas um universo de meios — no sentido original de Universum: tanto exclusivo como total.[43]

Em The Technological Society, seu livro mais conhecido, Ellul desenvolveu a dura tese de que o mundo e nossas formas de pensar sobre ele são moldados pelas ferramentas e máquinas (la technique). Sem qualquer explicação social de como essa “sociedade tecnológica” surgiu, o livro de Ellul conclui sem dar esperanças, e muito menos oferecer alguma abordagem que redima a humanidade de sua completa absorção pela technique. Em verdade, até um humanismo que queira dominar a tecnologia para satisfazer as necessidades humanas ficaria reduzido, do seu ponto de vista, a uma “piedosa esperança, sem qualquer chance de influenciar a evolução tecnológica”.[44] A partir dessa visão tão determinista de mundo, surge sua lógica conclusão.

Felizmente, Bradford nos dá uma solução: “começar imediatamente a desmantelar toda a máquina” (SIH, p. 10). E ele não tolera o compromisso com a civilização, repetindo todos os clichês anticivilizadores, antitecnológicos e quase místicos, que aparecem em certos cultos ambientais da new age. A civilização moderna, nos diz ele, é “uma matriz de forças”, incluindo

relações de consumo (commodity relations), comunicações de massa, urbanização e técnicas de massa, junto com […] Estados interdependentes, rivais nucleares e cibernéticos, convergindo todos para uma “megamáquina global”.[45]

As “relações de consumo”, observa ele em seu artigo “Civilization in Bulk” (CIB), são apenas parte dessa “matriz de forças”, na qual a civilização é “uma máquina” que vem sendo um “campo de trabalho de suas origens”, uma “rígida pirâmide de hierarquias incrustadas”, “uma grade expandindo o território do inorgânico” e “uma progressão linear que vai desde o roubo do fogo de Prometeu até o Fundo Monetário Internacional”.[46] Por isso, Bradford reprova o fútil livro de Monica Sjöo e Barbara Mor, The Great Cosmic Mother: Rediscovering the Religion of the Earth — não pelo seu teísmo atávico e regressivo, mas pelo motivo de as autoras colocarem a palavra civilização entre aspas —, uma prática que “reflete a tendência deste fascinante[!] livro em querer colocar uma perspectiva contrária ou alternativa à civilização em vez de questionar suas premissas” (CIB, nota 23). Supostamente, é Prometeu que deve ser condenado, não essas duas mães Terra, cuja relação com as divindades ctônicas, por todo seu compromisso com a civilização, é “fascinante”.

Nenhuma referência à megamáquina seria de fato completa, sem citação do lamento de Lewis Mumford sobre seus efeitos sociais. Na realidade, vale notar que tais comentários normalmente conferiram um falso sentido às intenções de Mumford. Mumford não era contrário à tecnologia, assim como Bradford e outros querem nos fazer acreditar; nem era, em qualquer sentido da palavra, um místico, cujo gosto combinaria com o primitivismo anticivilização de Bradford. Sobre esse assunto, posso falar por conhecimento próprio dos pontos de vista de Mumford, quando estivemos participando de uma conferência na Universidade da Pensilvânia, por volta de 1972.

Retomando seus escritos como Technics and Civilization (TAC), o qual é citado pelo próprio Bradford, veremos que Mumford sofre para descrever favoravelmente os “instrumentos mecânicos” como “potenciais veículos de propósitos humanos racionais”. [47] Relembrando, com frequência, seu leitor de que as máquinas vêm dos seres humanos, Mumford enfatiza que a máquina é “a projeção de uma faceta particular da personalidade humana” (TAC, p. 317). Na realidade, uma de suas principais funções é dispersar o impacto da superstição na mente humana. Assim:

No passado, os aspectos irracionais e demoníacos da vida invadiram esferas às quais não pertenciam. Foi um avanço descobrir que as bactérias, e não os duendes, são responsáveis por coalhar o leite, e que o motor refrigerado era mais efetivo do que um cabo de vassoura de bruxa, para os transportes de longa distância [… ]. A ciência e a técnica fortaleceram nosso moral: por sua própria austeridade e abnegação, elas […] desprezam os medos, as suposições e as afirmações infantis.[48]

Esta abordagem dos escritos de Mumford tem sido completamente negligenciada pelos primitivistas — em especial, sua crença de que a máquina fez a “contribuição suprema” de promover “a técnica da ação e do pensamento cooperativos”. Mumford nem hesita em louvar

a excelência estética do formato da máquina, […] sobretudo, talvez, uma personalidade mais objetiva que ganhou vida por meio de relações mais sensíveis e compreensivas com esses novos instrumentos sociais e por meio de sua assimilação cultural deliberada. [49]

Na realidade, “a técnica de criar um mundo neutro dos fatos, distinguindo-o dos dados brutos da experiência imediata, foi a grande contribuição geral da ciência analítica moderna” (TAC, p. 361).

Longe de compartilhar com o primitivismo explícito de Bradford, Mumford criticou com ênfase aqueles que rejeitam completamente as máquinas, e considerou o “retorno ao absoluto primitivo” como uma “adaptação neurótica” à própria megamáquina (TAC, p. 302), na realidade, uma catástrofe. “Mais desastrosa do que qualquer destruição física das máquinas feita pelos bárbaros é a sua ameaça de acabar com a força motriz humana, ou mesmo de modificá-la”, observou ele no mais severo dos termos, “desencorajando os processos cooperativos de pensamento e a pesquisa desinteressada, que são responsáveis pelas nossas maiores realizações técnicas” (TAC, p. 302). E colocou: “Devemos abandonar nossos fúteis e lamentáveis embustes de resistir à máquina, buscando evitar uma volta à selvageria” (TAC, p. 319).

Seus trabalhos posteriores também não revelam qualquer evidência de que ele tenha modificado esse ponto de vista. Ironicamente, ele desdenhou das performances e das perspectivas do Living Theater, com relação ao “Outlaw Territory” das gangues de motociclistas, colocando-as como “barbarismo”, e também criticou Woodstock, colocando-o como uma “mobilização de massas da juventude” que “não oferece ameaças à atual cultura de massas, que não tem personalidade e é supercontrolada”.[50]

Em suas posições, Mumford não defende a “megamáquina” e nem o primitivismo (o “orgânico”), mas a sofisticação da tecnologia a partir de linhas democráticas e humanamente determinadas. “Nossa capacidade de ir além da máquina (para uma nova síntese) está baseada em nosso poder de assimilar a máquina”, observou ele em Technics and Civilization. “Até que tenhamos absorvido as lições da objetividade, da impessoalidade, da neutralidade e do reino mecânico, não poderemos aprofundar nosso desenvolvimento rumo ao mais magnífico orgânico e ao mais profundo humano” (TAC, p. 363, grifos meus).

A denúncia da tecnologia e da civilização, como se elas oprimissem inerentemente a humanidade, na realidade, serve para encobrir as relações sociais específicas que privilegiam os exploradores em relação aos explorados e aqueles que são hierarquicamente superiores em relação a seus subordinados. Mais do que qualquer sociedade opressora no passado, o capitalismo concebe sua exploração da humanidade sob uma máscara de “fetiches”, para utilizar a terminologia de Marx em O Capital, sobretudo, o “fetichismo da mercadoria”, que tem sido adornado diferente e superficialmente pelos situacionistas, que o consideram um “espetáculo”, e também por Baudrillard, que o considera um “simulacro”. Assim como a apropriação do valor excedente realizada pela burguesia é encoberta pela troca contratual de salário por força de trabalho, igual apenas em aparência, a fetichização da mercadoria e de seus movimentos escondem as relações sociais e econômicas soberanas do capitalismo.

Há um ponto importante, e até mesmo crucial, que deve ser colocado aqui. Esta falta de evidência das relações do capitalismo faz com que o público não perceba que a competição capitalista é a causa das crises de nosso tempo. A essas mistificações, os antitecnológicos e os anticivilizadores adicionam o mito de que a tecnologia e a civilização são inerentemente opressoras, e, com isso, encobrem ainda mais as relações sociais específicas do capitalismo — principalmente a utilização de coisas (mercadorias, valores de troca, objetos — use o termo que quiser) para mediar as relações sociais e para produzir o panorama tecnourbano de nossa época. Assim como a substituição do termo capitalismo por “sociedade industrial” encobre o papel específico e principal do capital e das relações mercantilizadas na formação da sociedade moderna, a substituição de relações pessoais por “cultura tecnourbana”, no que Bradford engaja-se abertamente, encobre o papel fundamental do mercado e da competição na formação da cultura moderna.

O anarquismo de estilo de vida, em grande medida por estar preocupado com um “estilo”, e não com a sociedade, escamoteia o papel da acumulação capitalista, a qual possui suas raízes no mercado competitivo que gera a devastação ecológica. Ele observa, transpassado, uma suposta quebra da unidade “sagrada” ou “extática” entre a humanidade e a “natureza”, e o “desencantamento do mundo” realizado pela ciência, pelo materialismo e pelo “logocentrismo”.

Dessa forma, em vez de descobrir as fontes das patologias pessoais e sociais contemporâneas, a antitecnologia substitui, ilusoriamente, o capitalismo pela tecnologia, algo que facilita a acumulação de capital e a exploração do trabalho, causas evidentes do crescimento e da destruição ecológica. A civilização, representada pela cidade como um centro de cultura, é despida de suas dimensões racionais. Como se a cidade fosse um câncer que não diminui, e não a esfera com potencial para a universalização das relações humanas, em forte contraste com as limitações paroquiais da vida que se dão nas tribos ou nas aldeias. As relações sociais básicas da exploração e da dominação capitalista são ofuscadas por generalizações metafísicas sobre o ego e a technique, confundindo o público no que diz respeito às causas fundamentais das crises sociais e ecológicas — as relações mercantilizadas que dão origem aos agentes corporativos do poder, da indústria e da riqueza.

Isso não significa negar que muitas tecnologias são dominantes em essência e ecologicamente perigosas, ou afirmar que a civilização tem sido uma bênção perfeita. Os reatores nucleares, as grandes barragens, os complexos industriais altamente centralizados, o sistema de fábricas e a indústria de armas — assim como a burocracia, a destruição causada pelas cidades e a mídia contemporânea — têm sido nocivos, quase que desde seu princípio. Porém, os séculos XVIII e XIX não precisaram da máquina a vapor, da fabricação em larga escala, das imensas cidades e das gigantescas burocracias para devastar enormes áreas da América do Norte, praticamente acabar com seus nativos e para erodir o solo de regiões inteiras. Antes das ferrovias terem chegado a todas as partes da Terra, boa parte dessa devastação já tinha sido levada a cabo, com a utilização de simples machados, mosquetes de pólvora negra, veículos puxados a cavalo e arados.

Foram estas simples tecnologias que a empresa burguesa — as dimensões bárbaras da civilização do século XIX— utilizou para transformar grande parte do vale do Ohio River em local de especulação imobiliária. No sul, os proprietários precisavam de “mãos” escravas, em grande medida, porque a maquinaria para plantar e colher não existia; na realidade, os arrendatários americanos desapareceram durante as duas últimas gerações, principalmente, por conta da introdução da nova maquinaria que visava substituir o trabalho dos meeiros negros “libertos”. No século XIX, camponeses da Europa semifeudal, seguindo rios e canais, lançaram-se na selva americana e, por meio de métodos não ecológicos, começaram a produzir os grãos, o que acabaria impulsionando o capitalismo americano para a hegemonia econômica do mundo.

Indo direto ao ponto: foi o capitalismo — a relação de mercadoria completamente expandida em termos históricos — que produziu a crise ambiental explosiva dos tempos modernos, começando com as antigas mercadorias caseiras, que eram transportadas para o mundo todo em embarcações a vela, locomovidas pela força do vento e não por motores. Para além das vilas e das cidades têxteis da Grã-Bretanha, onde a produção em massa de manufaturas teve seu histórico salto tecnológico, as máquinas mais reprováveis de hoje em dia foram criadas muito depois da ascensão do capitalismo em muitas partes da Europa e da América do Norte.

Apesar do atual movimento pendular, que vai desde a glorificação da civilização europeia até sua indiscriminada depreciação, seria importante relembrar o significado do surgimento do secularismo moderno, do conhecimento científico, do universalismo, da razão e das tecnologias que potencialmente oferecem a possibilidade de um encaminhamento racional e emancipatório das questões sociais, visando a completa realização dos desejos e do êxtase, sem, no entanto, os muitos empregados e artesãos que saciavam os apetites de seus “chefes” aristocratas na Abadia de Thélème de Rabelais. Ironicamente, os anarquistas anticivilizadores, que hoje denunciam a civilização, estão entre aqueles que gozam de seus frutos culturais e que promovem as demonstrações mais individualistas de liberdade, sem qualquer noção dos excruciantes desenvolvimentos na história europeia que os tornaram possíveis. Kropotkin, por exemplo, deu ênfase ao “progresso das técnicas modernas, que simplificam maravilhosamente a produção de todas as necessidades da vida.”[51] Para aqueles que não têm senso do contexto histórico, as percepções arrogantes saem barato.

***

[41] George Bradford. “Stopping the Industrial Hydra: Revolution Against the Megamachine”. In: The Fifth Estate, vol. 24, núm. 3, 1990, p. 10.

[42] O deslocamento do foco do capitalismo para a máquina, e portanto o desvio da atenção do leitor das relevantes relações sociais que determinam o uso da tecnologia para a tecnologia em si, aparece em praticamente toda a literatura antitecnológica dos séculos XIX e XX. Jünger fala em nome de quase todos os autores do gênero ao observar que “o progresso da técnica aumentou, de forma constante, a quantidade total de trabalho, e é por isso que o desemprego espalha-se tanto, quando as crises e as perturbações afligem a organização do trabalho mecânico”. Cf. Friedrich Georg Jünger. The Failure of Technology. Chicago: Henry Regnery Company, 1956, p. 7

[43] George Bradford. Op. cit., p. 10.

[44] Jacques Ellul. The Technological Society. Nova York: Vintage Books, 1964, p. 430.

[45] George Bradford. Op. cit., p. 20.

[46] Idem. “Civilization in Bulk”. In: The Fifth Estate, 1991, p. 12.

[47] Lewis Mumford. Technics and Civilization. Nova York e Burlingame: Harcourt Brace & World, 1963, p. 301

[48] Ibidem, p. 324.

[49] Ibidem.

[50] Idem. The Pentagon of Power, vol. 2. Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1970, legendas das ilustrações 13 e 26. Esta obra em dois volumes tem sido, com frequência, mal-interpretada ao ser entendida como um ataque à tecnologia, à racionalidade e à ciência. Na verdade, conforme indicado em seu prólogo, a obra contrapõe a megamáquina, como modo de organizar o trabalho humano — e, sim, as relações sociais — às conquistas da ciência e da tecnologia, as quais Mumford normalmente aprovava, colocando-as no mesmo contexto social que é subestimado por Bradford.

[51] Peter Kropotkin. “Anarchism”. Op. cit., p. 285.