Ba Jin. “O Movimento Anarquista no Japão: os mártires de Tóquio”
No dia 20 de fevereiro de 1928 morreu na prisão de Akida, na região mais fria do norte do Japão, o companheiro japonês Kyutaro Wada. A notícia de sua morte me feriu profundamente. Há muito tempo sigo e escrevo a imprensa chinesa sobre os acontecimentos que conduziram a condenação de Wada e o martírio de Daijiro Furuta. Para o mundo europeu o nome de Wada é novo; mas no coração dos trabalhadores japoneses viverá longamente sua memória, como a de Furuta e de tantos outros mártires, no qual se poderia dizer que não estão mortos, pela memória que deles restou. Sua vida, suas lutas, seu martírio representam uma tragédia que só a pluma de um Shakespeare saberia descrever dignamente. Eu tentarei um esboço, que escrevo com sangue e lágrimas, para que o mundo europeu saiba que nos países do misterioso Oriente existiram e existem todavia homens que morreram e morrem pelo triunfo da Anarquia.
O massacre
No primeiro de setembro de 1923 o Japão foi afligido por terríveis abalos sísmicos. Em Tóquio estourou simultaneamente um incêndio em vários pontos. A espantosa desventura que feria o país fez nascer no pensamento do governo o plano de usar isso como pretexto para esmagar os movimentos subversivos, desde a oposição coreana até o anarquista. No dia seguinte da horrível catástrofe, se fez circular entre os sobreviventes fugitivos da burguesia atemorizada, o rumor de que “os socialista e os coreanos haviam lançado bombas”, “incendiado casas”, “envenenado poços e mantimentos”. Estes rumores caíram em terreno fértil: a burguesia, alarmada, se pôs em estado de defesa em cada bairro; as organizações militarizadas como a “Sociedade Nova” e a “Associação dos ex-combatentes” foram logo mobilizadas. Todos os componentes destas guardas brancas estavam armados de grandes sabres, pistolas, e lanças de bambu. Tinham como objetivo os coreanos e os socialistas libertários.
O primeiro triunfo da horda foi a destruição da casas de muitos revolucionários, e a detenção, seguida de torturas, de uma grande quantidade de companheiros. Em 3 de setembro, na rua Okina foi preso o companheiro Harissana, de 37 anos, secretário da associação operária “Yun Rôdô Kumial”, com dez companheiros mais. Foram levados secretamente a delegacia de Kumaido, e ali se lhes matou a golpes de sabre. Seus cadáveres foram logo queimados, junto com algumas dezenas de coreanos assassinados. Nossos companheiros haviam morrido gritando “Viva o proletariado!”
Em todas as delegacias os companheiros foram injuriados e maltratados. Os policiais, em grande número costumavam jogar um para outro os corpos das vítimas, ou os golpeavam até que perdiam os sentidos. Alguns foram atormentados assim várias vezes. Assim R. Taheschi, amarrado com as mãos nas costas, foi submergido em água pútrida e trancafiado depois num local da prisão de Hanan. No dia 16 de setembro o companheiro Sakae Osugi, de 32 anos, redator do mensuário anarquista Rôdô Undô, sua companheira Noe Ito, de 29 anos, conhecida no movimento anarquista japonês, e Tachibana Munezaku, garoto de sete anos, seu sobrinho, foram transportados num automóvel a comando da gendarmeria, e ali estrangulados pelo capitão de polícia Amakasu, o suboficial Mori e dois cabos: Kamoshida e Houda. Os cadáveres foram desnudados, logo lançados num poço enquanto suas as roupas eram queimadas para destruir qualquer prova. Contudo, no no dia 20 de setembro o delito foi descoberto e Amakasu logo detido; os demais policiais foram exonerados por haver sido evidentemente considerados autores da matança, mas o governo não explicou ao público os motivos da exoneração. O assassinato de Osugi, naturalmente, suscitou a indignação do povo contra o governo; mas este não chegou a por fim ao massacre de coreanos e socialistas em geral. Junto a Osugi pereceram grande número de companheiros nossos, alguns milhares de coreanos inocentes, e nem mesmo os chineses ficaram imunes.
Depois da matança
A classe dominante estava preparando há muito tempo a matança de Tóquio. Wada expressava indubitavelmente a verdade quando escrevia em Rôdô Undô, três meses depois da morte de Osugi:
A autoridade pretende que o assassinato de Osugi deve ser atribuída a iniciativa pessoal do capitão Amakasu e de seus cúmplices. Esta é uma mentira vulgar. Sabe-se, de fato, que os militaristas incubavam há alguns anos o desejo de degolar na primeira ocasião propícia todos os revolucionários, e que durante esse tempo os comandantes, em sua inspeção as tropas, anunciavam que: “o Estado espera fazer guerra aos socialistas no próximo porvir…” Dos acontecimentos anteriores se deduz com claridade mais que suficiente, que os assassinatos em massa não partiram da iniciativa pessoal de um indivíduo, mas sim do governo, que cedeu a pressão insistente dos militares. Durante o processo, Amakasu, o assassino de Osugi, pareceu ser considerado com menosprezo por parte da burguesia. Mas logo quiseram enxergar nele um fervoroso patriota de temperamento veemente.
Confessou com arrogância haver assassinado induzido por um patriotismo sincero, levado por um impulso pessoal, coisa que ninguém acreditou. Por tudo isso todo o processo foi uma comédia. Amakasu foi condenado a dez anos de prisão, mas em 27 de janeiro do ano seguinte a pena lhe foi reduzida para três anos. E terminou por colocarem-no clandestinamente em liberdade antes de que terminasse seu primeiro ano de prisão. Um exemplo a mais da tristemente famosa justiça burguesa. Mas ele não podia ser tolerado em silêncio! E em pouco tempo apareceram os vingadores: amigos dispostos a vingar com sangue o companheiro caído, a estigmatizar a “justiça”, a espoliar o povo: os anarquistas.
Os vingadores
Entre os amigos e companheiros de Osugi estavam Wada, Furuta, Murkai, Kuratschi e Sintani, que resolveram vingar a morte de Osugi matando o general Fukuda, que havia sido o comandante das tropas que atuaram contra o ambiente social, e que, entre parênteses, foi também o executor da última matança de chineses em jinan. Prepararam o assalto a uma casa do pequeno subúrbio de Tóqui, Kubi Korboruma, fixando o dia 16 de setembro a data para a execução, primeiro aniversário do assassinato da família Osugi. Kuratschi procurou a dinamite, e Santani fabricou o necessário para confeccionar a bomba.
Descreverei agora brevemente a vida destes cinco companheiros: Furuta era um bravo militante da ideia anarquista e não tinha mais que 25 anos. Durante vários anos editou o periódico anarquista O Camponês. Junto com outros companheiros havia fundado na grande cidade industrial de Osaka o grupo “Guilhotina”. Um ano antes de sua prisã havia resolvido, com o companheiro Naganama e outros do grupo, destruir uma casa bancária de Osaka. Do atentado resultou morto o banqueiro. Nakahama, Utschida, os irmãos Komiskai e outros foram detidos e isolados na prisão de Osaka. Furuta descendia de uma família abastada. Ao contrário, Wada procedia de uma família pobre. Ainda muito jovem, teve que trabalhar para ganhar a vida. Foi mineiro e ocasionalmente ferroviário. Autodidata, aos 16 anos já era socialista. Pouco depois encontrou no anarquismo seu campo de luta. Magnífica figura militante, animado de um entusiasmo inigualável. Trabalhou junto com Osugi e os demais na grande obra de libertação dos explorados. Lia com paixão e escreveu um grande número de poesias. Muraki era um velho anarquista e o amigo mais íntimo de Osugi. Simpático, afável, cortês. Desde muito tempo sofria de infecção pulmonar. Kuratschi era, como Wada, filho de família pobre. De ofício tecelão, fundou o sindicato na fábrica onde trabalhava. Sintani havia nascido também entre a miséria. Era metalúrgico desde a infância e nunca frequentou nenhuma escola. A experiência da vida lhe conduziu ao anarquismo, considerando que era o único meio de chegar a suprimir as injustiças e a inequidade da sociedade contemporânea, da que ele era, entre tantas, outra vítima.
O atentado de Fukuda
Ocorreu finalmente o dia da vingança, que não foi, no entanto, o dia 16, mas sim o 1 de setembro de 1924. Nesse dia se desenrolava em Vinki, subúrbio de Tóquio, uma cerimônia comemorativa do grande terremoto, e o general Fukuda ia ser nela o primeiro orador. Às 18 horas o automóvel do general chegou a porta de Yinnaku-kin, e Fukuda desceu dele dirigindo-se até a sala de reunião. Um homem que o seguia lhe disparou um tiro de revólver sem feri-lo. Ia repetir o disparo, mas não teve tempo, pois foi capturado pela escolta de Fukuda. Esse homem era Wada. Foi conduzido ao posto de políia de Hondfuschi, onde declarou haver trabalhado por iniciativa própria, porque estava convencido de que Amakasu assassinou Osugi por instigação de Fukuda, e havia chegado a determinação de matar Fukuda para vingar seu companheiro. Como consequência disto a política invadiu os domicílios de muitos companheiros, submetendo-lhes a longos interrogatórios. Cinco dias depois a casa do general Fukuda foi destruída por uma bomba, mas Fukuda não se encontrava em seu domicílio. Furuta e seus companheiros lançaram outros explosivos, mas sem alcançar, desgraçadamente, melhor êxito.
Detenção dos vingadores
Na noite do dia 13 de setembro a política deteve Furuta e Muraki em suas habitações. As casas haviam sido cercadas por forte contingente de polícia. Um deles bateu na porta com o pretexto da entrega de um telegrama. Furuta abriu, a polícia se apoderou dele e invadiu a casa. Muraki, por sua parte, se propunha fazer fogo, mas não teve tempo para isso. Kuratschi e Sintani se haviam dirigido com bombas a Asaka para livrar da prisão o companheiro Tetsuo e outros. Mas a polícia, havendo ouvido rumores do complô, conseguiu lhes deter antes que tivessem tempo de por seu plano em execução.
A comédia do processo
O processo se desenvolveu rapidamente em poucos dias, do 21 ao 213 de julho e no dia 15 de agosto. Muraki já havia falecido. A causa de sua morte, na verdade, era a tuberculose, mais as péssimas condições da prisão que haviam acelerado o processo de sua enfermidade. Era um homem que havia lutado energicamente pela anarquia apesar de sua grave enfermidade. No terceiro dia do processo o promotor público propôs a pena de morte para Furuta, Wada e Kuratschi, e 10 anos de prisão para Sintani. Durante o processo Furuta havia exclamado: “Este processo é uma comédia!” E tinha razão. Eu também estou convencido de que foi uma comédia. O grande mal é que a compreendê-lo estão sempre somente aqueles que o sofrem.
A sentença
Como os mártires de Chicago, foram condenados os companheiros do Oriente depois da ridícula comédia de alguns dias de processo. O governo atual do Japão é onipotente: assassina nossos militantes um atrás do outro. A justiça? Um escárnio. O humanitarismo? Não existe. Dá-se curso a lei, e a lei é manipulada pelos governos: é o instrumento com que assassinam os soldados da liberdade. No 10 de setembro foi pronunciada a sentença: Furuta, que fabricou as bombas e matou um banqueiro em Osaka, condenado a morte. Wada, que atentou contra o general Fukuda, foi condenado a prisão perpétua. Kuratschi, que havia levado dinamite das minas, entregando a Furuta, 12 anos de prisão.
Sintani que havia intervido na manipulação de explosivos, foi sentenciado a cinco anos de prisão. No dia da sentença, sobre pretexto de que o presidente havia recebido ameaças anônimas, vários companheiros foram detidos.
Desejo morrer
Pronunciada a sentença, Furuta e Wada declararam desistir da apelação. Wada disse: “Desejo morrer; não quero inspirar compaixão, nem solicitar redução da pena. Somente me dói imensamente não compartilhar da sorte de Furuta”. Pensava certamente nas palavras do mártir de Chicago, Neebe, aos seus juízes: “Morrer de um golpe é melhor que morrer pouco a pouco”. No dia 4 de agosto Wada escreveu seu testamento no que dizia: “Se sou condenado a morte e justiçado, fertilizai com minhas cinzas os vasos de flores, e como cerimônia fúnebre organizai uma excursão”. Furuta também escrevei aos companheiros no dia 14 de setembro: “O advogado Fusetasughi me comunicava que não desgosta de nossa atitude, porque estais de acordo em não apelar. Isto nos deu muito prazer e dele estamos infinitamente agradecidos”.
No dia 20 de setembro Wada foi transferido a prisão de Akida, para cumprir prisão perpétua. Os companheiros Furukana e Ikeda foram condenados a seis meses de prisão por haver pronunciado ameaças contra o presidente do tribunal e o general Fukuda. Na verdade, o companheiro Furuta esteve sereno até o último momento. Seu sorriso tranquilo reconfortava todos que iam a visitá-lo. Morreu no dia 15 de outubro sobre o patíbulo de Itschigaya. Pela noite, seu irmão e alguns companheiros foram retirar seu cadáver. Um deles escreveu:
Anoitece quando entramos no recinto da prisão. O guarda nos recebe com uma lanterna e nós o seguimos ao longo do velho muro. Na sala de visita nos deparamos com nosso Furuta sorridente, mas seu corpo está frio. Em volta do pescoço a corda havia deixado sua marca. Pouco depois introduzimos o catafalco. Enquanto colocávamos nele o corpo rígido, pendia a cabeça. Furuta parecia dormir. Seguindo o desejo de seu pai o transportamos ao lugar que mais havia amado em sua vida: o subúrbio de Lasugaya (Tóquio), na casa do advogado Fusetasu.
Às dez se reuniram alguns companheiros em torno do féretro e leram sua última carta: “Queridos companheiros!: Morro, os auspicio saúde e energia. 15 de outubro, hora 8:25. Daijiro Furuta”. Escreveu essas palavras cinco minutos antes de morrer. Subiu ao patíbulo acariciando a fotografia de seu cachorro e seu gato, e tendo nas mãos uma folha de árvore, enviada por sua irmã mais velha. Até o féretro seu coração pertence aos seres e as coisas que amava.
Morte serena
Furuta esperou a morte na prisão de Itschigaya. “Tudo acabou. A consciência não me pesa. Estou sereno” disse ele como já havia dito Fgatechi, o famoso novelista socialista japonês, íntimo de Furuta: “Nestas condições, à despeito da dor e da ira, posso esperar, sossegado e sereno, o veneno da morte”. Assim morria um anarquista.
A morte de Tetsuo
O 6 de março de 1926 terminou o processo contra o grupo “Guilhotina”, de Osaka. Tetsuo Nkahama foi condenado a morte. Momischi e Kanaka a prisão perpétua. Utschida e outros três companheiros a 15 anos; Zamako a 8; Ito e Ueno a 3 anos. A execução do poeta Nakahama na forca ocorreu clandestinamente no dia 15 de abril na prisão de Osaka. Mas suas obras: Pão negro, e o magnífico poema: Luto pelo meu último companheiro Furuta, que me comoveu até as lágrimas, e outros poemas mais, não podem, junto com o livro de Wada: Da Prisão, executar.
O assunto Boku
Já antes do martírio de Tetsuo, haviam sido condenados a morte, em Tóquio o companheiro Boku Retzu [mais conhecido como Pak Yol] e a companheira Fumi Kaneko. O chamado “assunto Boku” consistiu no seguinte: desde muito tempo antes haviam sido detidos alguns valorosos anarquistas coreanos: Boku Retzu, Kiu Schau-kan e outros, com eles a companheira japonesa Fumi Kanelo sob a acusação de haver conspirado contra a vida do imperador. O assunto pode se chamar “intriga dos coreanos”.
As ordens partiram do governo que buscava um pretexto para fazer degolar do modo mais horrível a alguns milhares de coreanos, chineses e revolucionário pela multidão enfurecida, a soldadesca, e a polícia. A propaganda e a instigação ao genocídio foram obra de altos quadros do governo e do exército, durante a última catástrofe: “Prestai atenção, diziam, os coreanos, os revolucionários e os chineses nos atacam. Homens: arma-os! Mulheres, crianças: fugis!”. No 25 de março de 1926, Boku e sua companheira Kaneko foram condenados a morte pela “intenção de assassinar o Príncipe”. A acusação era, indubitavelmente falsa. Diante o tribunal ambos se comportaram com muita firmeza e serenidade. Ao pedir-lhe seu nome, Boku respondeu: “Não tenho nome!” E quanto ao seu local de nascimento, disse: “O mundo!” E referente a sua descendência, acrescentou: “Do proletariado!” Sabiam que a sentença comportava a morte; e quando se passava a leitura, se levantaram sorridentes, se abraçaram e se beijaram. “Viva a Anarquia! gritou Kaneko. O público estava profundamente comovido. De muitos olhos se desprendiam lágrimas.
Não ousaram os executar e sua pena foi comutada para prisão perpétua, cuja notícia receberam como houvera sido um insulto. No dia 23 de julho, ao despontar o sol, Fumi Kaneko se suicidou em sua cela, deixando seus escritos Pensamentos do cárcere. O companheiro Kiu Schau-kan foi condenado a três anos de prisão. Aqui termina minha narração. Me secaram as lágrimas. A dor e a ira tem raízes profundas no meu coração, e ainda que eu seja jovem e pouco experiente na luta, a consciência me diz para ter confiança num porvir melhor. Creio firmemente que enquanto haja homens qu saibam morrer pelo alto ideal da Anarquia, a Anarquia será a esperança viva da Humanidade. Diziam justamente os companheiros japoneses: “Muitas companheiras e companheiros caíram na luta: Nós avançamos sobre seus cadáveres, até a vitória! Adiante!”
Tradução ao Português: Rafael V. da Silva
La Antorcha, n0 298, 23 de abril de 1930.